O AMOR É... (Segundo Sócrates)

A solidão faz parte de nossa existência, sabidamente breve

Talvez por isso a natureza humana o amor tenha inventado

Ou, quem sabe, tenha sido o amor que nos tenha criado

E emprestado, em chance, à nossa alma... alguém se atreve?

Afinal, o que vem a ser, em essência, o amor?

Mesma pergunta fazia-se Sócrates, sábio grego, durante um banquete, há 2500 anos.

Claro, estamos longe de resolver a questão, e talvez, definir o amor seja impossível.

O fato é que, dotados de razão, temos plena consciência de como nossa existência é breve, e do quanto a solidão pode fazer parte dela. Talvez, por isso, a natureza humana tenha inventado o amor, numa tentativa de dar aos outros aquilo de que mais temos necessidade, a preencher magicamente essa nossa falta essencial. Ou talvez seja a amor quem nos tenha criado, e por capricho emprestado à nossa alma a chance de experimentá-lo.

Curiosamente, o deus do amor não toma parte das epopéias de Homero (Ilíada e Odisséia); mas faz-se presente dali a algumas décadas na Teogonia, escrita nos fins do séc. VIII a.C. por Hesíodo, poeta camponês beócio. Até então, Eros era cultuado na Beócia apenas como agente fecundador dos animais e propiciador dos matrimônios, mas o poeta o transformará num deus primordial, a conferir com as cosmogonias mais arcaicas oriundas de outras regiões da Magna Grécia.

"No princípio era o Caos", diz o poeta; "de onde surgiu Gaia, a Terra, de largos flancos, base segura para todos os seres, e Eros, o mais belo dentre os imortais, capaz de desequilibrar os membros e de subjugar no peito de todos os homens e deuses o coração e a sábia vontade". (...) "A Terra, então, engendrou Urano, o Céu Estrelado, capaz de cobri-la por inteiro e de oferecer aos deuses sua base para sempre". Nos versos seguintes, a Teogonia nos revela que devido à presença de Eros, o amor universal, Gaia apaixona-se por Urano, e o abraça até ser fecundada, gerando muitos filhos e povoando toda a Terra.

Em sua concepção, Hesíodo não só enriquece as antigas versões da Criação, esparsas pela tradição grega, como sistematiza toda a genealogia dos deuses em torno do Amor, força primordial de atração, capaz por si só de justificar a união entre os seres e suas gerações.

Numa variante órfica, Caos e Nix (a Noite) é que estão na fonte cósmica; Nix põe então um ovo do qual nasce Eros; este, ao romper a casca em duas metades, faz nascer Gaia e Urano. Embora assuma distintas genealogias, quase que invariavelmente Eros traz esse aspecto de potência vital do cosmos, e transmite a toda e qualquer união sexual o padrão da primeira hierogamia (casamento divino), o enlace entre Céu e Terra, de onde derivam todas as formas viventes.

O I Ching, livro milenar de sabedoria taoísta, nos diz que "quando essa penetração recíproca se opera, Céu e Terra se harmonizam e todas as dez mil coisas se produzem". É o signo da conjunção dos opostos, da união entre pares que se completam, Yin e Yang que se fecundam mutuamente.

No Brahmanismo encontramos o mesmo dinamismo na representação de Shiva-Shákti, divindade hermafrodita cujo aspecto masculino (Shiva) está perenemente se fundindo ao de sua consorte. Shiva, conforme dança, transforma-se em Shákti ao mesmo tempo que esta volta a ser Shiva, buscando reencontrar a unidade original por detrás da androginia.

Hesíodo influenciou Parmênides de Eléia, séc. VI a.C., o primeiro racionalista da filosofia ocidental. Em Sobre a Natureza, Parmênides traça dois caminhos: o do Ser, ou da Verdade, a única realidade que existe, e o da Opinião, centrado nos sentidos e aparências. Sua segunda via está constituída por dois princípios: Luz e Trevas, de onde todas as formas aparentes se originam, mescladas por uma única força capaz de unir os princípios opostos fundamentais, o amor.

Outro filósofo, Empédocles de Agrigento, séc. V a.C., ao retornar da Sicília envolto por idéias da Escola pitagórica, tentou unir num único sistema a "filosofia do Ser" de Parmênides com a "do devir" de Heráclito, que lhe fazia direta oposição. Para este último, o conflito é o pai de todas as mudanças, e a vida, numa alegoria, nada mais é que o resultado da tensão entre o arco e sua corda. Empédocles imaginou então o cosmos como uma esfera absoluta e fechada, homenagem ao Ser de Parmênides, mas pôs nela o conflito de Heráclito, fazendo de Philia, outro nome para o amor, e neikos, o ódio, as forças opostas e complementares inerentes aos quatro elementos (água, fogo, terra e ar) que, misturados entre si, geram todas as coisas mutáveis da vida.

Mas dentre os antigos, foi Platão (428-347a.C.), sem dúvida, quem mais se dedicou a discutir o amor, tornando-o um dos pontos fulcrais de seu sistema filosófico. Toda a sua Obra procura estabelecer a via de relação entre o mundo incorpóreo e perfeito das idéias e o plano material das coisas sensíveis, ao qual estamos presos, em meio às meras imitações das formas puras. Se, por um lado, Platão revela ser a dialética o exercício capaz de nos alçar deste mundo denso das opiniões ao sublime mundo das idéias, em seu diálogo O Banquete, o filósofo nos oferece uma nova perspectiva para este salto evolutivo. Propõe que pela ascese erótica cheguemos a essa contemplação, pois a alma, quando quer que se deixe levar pelo amor, vislumbra a própria divindade. Eros é, pois, o mediador entre as vicissitudes da realidade imediata e as verdades transcendentes.

Em 416 a.C., numa festa na casa de Agaton, que comemorava um prêmio recebido por uma de suas Tragédias, os convidados se propõem a competir discursando sobre o amor. Fedro de Mirrinote, primeiro a falar, mostra o amor como o mais bondoso dos deuses; Pausânias, em seguida, distingue o amor sexual do espiritual; e o médico Erixímaco trata o amor como uma força organizadora do cosmos. O comediante Aristófanes narra então um mito acerca dos andróginos e a separação dos sexos, e é seguido pelo anfitrião, que se põe a louvar deus Eros, enaltecendo sua beleza, vendo-o como fonte de inspiração. Convidado especial do banquete, cabe a Sócrates falar por último. "Não poderei fazê-lo", ele diz, argumentando não reunir talento para tanto diante de tudo que já fora exposto. Mas os presentes, inconformados, cobram dele uma opinião.Ponderando, o sábio diz que falará então à sua maneira, sem fazer elogios e sem querer competir. Aplica então a maiêutica aos discursos apresentados, pergunta a todos sobre a verdadeira essência do amor e, evidentemente, ninguém sabe defini-la.

Sócrates introduz então um mito que diz ter ouvido da sacerdotisa Diotima de Mantinéia: quando nasceu Afrodite, os deuses banqueteavam no Olimpo; mas haviam se esquecido de convidar Penúria, deusa da pobreza, que, após a festa, miserável e faminta, veio à caça dos restos enquanto todos dormiam. Nisso encontrou Poros, deus dos recursos, embriagado e prostrado no jardim dos deuses. Deitou-se com ele, e concebeu Eros. "Eis porque o Amor se tornou amante do belo e servo de Afrodite, pois foi gerado em seu dia natalício", explica Sócrates. Assim como sua mãe, o amor vive faminto e sedento, deseja preencher-se; como o pai, encontra sempre expediente para alcançar o que deseja...

Lobo da Madrugada
Enviado por Lobo da Madrugada em 18/03/2007
Reeditado em 14/10/2007
Código do texto: T416961
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