O sapateiro

Ele era barulhento, conhecido na cidade e, com o apelido famoso com o qual todos o chamavam, impossível não ser uma figura notada.

A companheira, D. Salustiana (vó Salu), que conseguia conviver com as estrepolias dele, era a parte sábia naquele relacionamento em que as atitudes, as vezes imaturas dele, causavam confusão. Justiça seja feita: ele também era conhecido por sua generosidade, um amigo e vizinho que estendia a mão aos que necessitavam.

Na verdade um casal adorável, que se completava e onde o pé no chão - dela, servia de âncora pra cabeça nas nuvens - dele.

Sapateiro daqueles cujo proceder confirmava a fama. Não entregava uma mercadoria na data!

Na pequena cidade da baixada maranhense, idos dos anos 50, ele era um dos sapateiros que calçava os homens das redondezas. Havia aqueles que faziam serviços finos como sapatos femininos e infantis e outros que, como ele, faziam trabalhos mais simples e rústicos calçados masculinos pra enfrentar o areal que cobria as estradas carroçais de então.

Época de festa de São Roque, e os homens de povoados vizinhos vinham encomendar seus sapatos.

Naquela casa de esquina onde desembocavam os cruzamentos de duas estradas que levavam aos povoados adjacentes, os cavalos esgravatavam o chão seco, procurando qualquer resquicio de capim, empinavam, se escoiceavam as vezes, presos pelo cabresto afixados em tocos na beira da calçada.

Lá dentro se desenvolviam as negociações acerca dos calçados, enquanto Cacate riscava com carvão numa folha de papel de embrulho, o formato do pé do cliente e combinava o dia de entrega.

Recebia parte do dinheiro e enquanto os ajudantes martelavam surdamente folhas de sola, ele dizia pra D. Salu que ia comprar o couro, os pregos e outros materiais.

Rapariga, eu vou no comercio comprar o material. Vorto logo. - isso dito aos berros no volume e tom que a vizinhança toda conhecia e com sua característica forma de tratamento a qualquer figura feminina.

Torquato, tu não demora. Os trabalhador não tem material.

Ih, rapariga, me deixa. Eu não demoro.

Isso acontecia de manhãzinha e muitos clientes iam ao comercio da cidade, visitar algum parente, resolver seus assuntos pra ao final do dia pegar seu calçado e só então voltarem pra seus lugarejos distantes algumas léguas.

No final da tarde, a rua toda ouvia quando ele, ao longe, no incio da quadra, vinha aos berros, trôpego e com uns pacotes debaixo do braço.

Salu, Salu...

Rapariga, olha o que eu trouxe...

Rapariga, cadê tu?

Isso aos tropeções enquanto ele avançava em zique-zague. D. Salu punha a cabeça na janela e devolvia.

Que é cabra, tu não me deixou em casa? Espera chegar.

E ele chegava. Amarfanhado debaixo dos braços vinham alguns pacotes se desfazendo. Trazia peixe seco, farinha da boa, algum mimo pra ela como grampos coloridos pra o coque e … nada do material que fora comprar. Isso com clientes esperando

Cabra, cadê os pregos e o couro? A sola já foi batida e os trabalhador 'tão esperando.

Rapariga, tu reclama de tudo. Olha as tarira que tu gosta e essa farinha...

Cabra, o povo vem buscar os calçado e tu 'tava bebendo?

Imediatamente como se esperando a deixa dela, ouvia-se o resfolegar de cavalos, e na calçada eram eles presos, enquanto entravam dois clientes.

E então, seu Torquato... amanhã começa o festejo lá no Arraial de São Roque. 'Tou de olho numa moça lá e amanhã nóis fala.

'Tá quase pronto. Só farta lamber e pregar a parmilha. - Isso era dito num tiro e o cliente não entendia nem o 'lamber' nem a 'parmilha', então se conformava e negociava pra voltar no dia seguinte.

No dia seguinte os clientes encontravam os calçados rústicos, com mutos preguinhos, e prontos à sua espera. Tudo continuava na mais perfeita calma e assim a vida corria.