Os passa-fome

Na beira do campo, as casinhas simples, algumas de taipa de pilão, têm grandes quintais e cada pessoa cultiva seu alimento na roça ou nesses quintais cheios de jiraus com legumes, temperos, plantas medicinais que dividem o espaço com chiqueiros e galinheiros.

Há um grande comercio na região, que seria quase um shopping hoje dada a diversidade de produtos manufaturados que vende naquelas paragens, onde tudo o mais é suprido por pequenas quitandas.

Assim a vida corre naqueles idos de 30, na baixada maranhense, em São Bento.

O velho patriarca, Sr. Antero, dispõe de recursos e cria gado, administrando seus bens com a ajuda de vaqueiros.

É uma região pobre, mas como todos, de certa forma, produzem o que comem, não há miséria, nem gente passando fome. Há - é certo - os mais aquinhoados de sorte, e seu Antero é um deles.

Homem conhecido pelo tom jocoso que usa com todos indiscriminadamente, pela língua ferina que não poupa ninguém e pela voz potente que alcança grandes distâncias, já que fala tudo aos brados, e ali naquela região de vastas planícies e cujos sons mais altos são um ou outro rangido de carro de boi e o toque de um berrante chamando o gado, ele consegue ser ouvido por toda a população do campo.

É entretanto, um homem de insuspeita generosidade que não é alardeada, exceto que as próprias ações fazem sua fama conhecida.

Tem manias as quais a esposa já se costumou.

Uma delas é a noção, sabe-se lá porque, de que um boi deve ser morto todo dia, afinal ele acha que sem isso, passará fome.

Assim, a cada manhã, o vaqueiro é chamado

Raimundo!!! - o berro potente chega até os confins do terreno onde o vaqueiro cuida de suas funções.

Nhô, seu Antero. - e o homem chega rápido na sua montaria sabendo que paciência não é o forte do patrão.

Cabra*, mata o boi pintado, aquele que tá furando cerca.

Mas ele é bom, tá cobrindo as vacas e tem outros menores...

E por acaso eu vou passar fome? - isso já era dito aos berros e toda a vizinhança ouve e sabe o que significa.

O vaqueiro, chapéu na mão, risca o chão, se cala, sabendo que o velho teimoso não é aberto à discussões e sai pra cumprir sua função. Volta depois pra dar o resultado do trabalho.

O bicho tá morto, seu Antero. Que parte o senhor quer? - esse diálogo já era de praxe e nessa parte não mudava o script.

Dá o quarto esquerdo pra Pisinha, lá na casa.

E o resto, seu Antero? – essa parte do diálogo também era pró-forma uma vez que a resposta já era conhecida.

Dá pra o povo, ora.

Assim a vizinhança, a cada manhã era premiada com três quartos de um boi grande.

Todos já sabiam que podiam contar com isso e a explicação do velho pra essa atitude perdulária a cada manhã era que ele não ia passar fome, portanto fazia-se necessário matar um boi por dia.

Não se sabe se não era uma maneira disfarçada de suprir a vizinhança mais necessitada de uma carne que ela não teria de outra forma, dado que dinheiro era um luxo usado pra aquilo que não se podia produzir.

Daí ele foi cunhado como Antero Passa-fome e o apelido por extensão coube à sua descendêcncia, como “Os passa-fome”, de quem uma das netas era minha avó - Luiza.