Uma semana em Lisboa

Com o rosto colado na janela do avião, vendo surgirem diante de seus olhos maravilhados os primeiros prédios da bela capital portuguesa, Camila tirou uma foto do que lhe pareceu ser a Torre de Belém e postou: “Depois de uma travessia tranquila do Atlântico: Lisboa”. Nenhum comentário sobre a terrível turbulência que tinham enfrentado no caminho, em plena madrugada: passageiros jogados com violência contra o teto do avião, bagagens de mão lançadas como torpedos para todos os lados, gritos desesperados (a maioria invocando Deus e os santos, como se só eles pudessem salvar aquele voo de uma tragédia); enfim, uma confusão dos diabos. Camila não conseguia nem virar o pescoço direito por causa do tombo que tinha levado. Na hora ela estava dormindo, sem cinto de segurança. Quando acordou, no momento de maior instabilidade, seu corpo estava sendo arremessado para cima como um boneco de borracha, os olhos arregalados, um grito de pânico entalado na garganta que só saiu quando ela caiu de cabeça no chão, torcendo o pescoço.

Finalmente Camila conheceria Lisboa: comeria pastéis de Belém, sardinhas assadas e o melhor bacalhau do mundo; subiria até o Bairro Alto pelo elevador de Santa Justa; passearia pelas livrarias do Chiado: tudo minuciosamente planejado no Google Maps.

Só que, ao se levantar para sair do avião, sua coluna travou. Hérnia de disco. Um ataque dos bravos. Qualquer tentativa de movimento tinha como resposta uma dor insuportável. Ficou parada onde estava, como um robô enguiçado, com o pé esquerdo já no corredor, aguardando que uma aeromoça passasse por ali para socorrê-la. Finalmente, quando todos os passageiros saíram, ela conseguiu balbuciar um pedido de ajuda para um comissário de bordo, que lhe respondeu: “Vamos providenciar uma maca, senhora”.

Saiu do avião de maca. O céu era de um azul belíssimo, límpido, com pouquíssimas nuvens. Quase tirou uma foto e postou “Sob o céu de Lisboa”, numa alusão ao filme de Wim Wenders; mas preferiu ficar quieta.

Do aeroporto Portela Camila foi levada a um hospital, onde lhe deram uma injeção na veia que, em meia hora, fez desaparecer completamente a dor. “Que maravilha!”, pensou. “No Brasil eu ficaria de cama no mínimo três dias”. Ao sair, soube por uma enfermeira que em Portugal havia muita pesquisa médica sobre problemas de coluna e doenças reumáticas, porque o número de pessoas sofrendo desses males ali era imenso. “Aqui você vai encontrar muito mais lojas especializadas em reumatismo do que em brinquedos”, disse-lhe a enfermeira, despedindo-se. “Que triste!”, pensou Camila.

Em frente ao hospital, Camila pegou um táxi e foi para o hotel, onde descobriu que a sua mala tinha sido trocada no aeroporto. Por fora parecia a mesma – uma mala dura, preta, pesando cerca de trinta e cinco quilos, da mesma marca que a sua –, mas por dentro só tinha roupas femininas que não lhe pertenciam, todas de um tipo só – para ser mais preciso: trinta batas africanas largas e pesadas, estampadas com cores berrantes. Camila então ligou para a companhia aérea, anotou o número do protocolo, ligou para a seguradora, anotou o número do protocolo, respirou fundo, desabou na cama e chorou.

Minutos depois disse para si: “Chega de choro, Camila. Levante-se já dessa cama e vá conhecer Lisboa”. Foi o que ela fez. Mas antes de sair, num acesso de rebeldia, vestiu uma das batas que estavam na mala e amarrou um lenço colorido na cabeça. Saiu assim, achando-se linda, pela rua afora. Parou numa esquina, tirou uma foto de seu rosto e postou: “Eu de africana nas ruas de Lisboa”. Pegou um trem e foi para Belém.

Em Belém, depois de visitar a Torre e o Mosteiro dos Jerónimos, foi experimentar o famoso Pastel de Belém. Achou lindo o doce: a massa crocante, o creme amarelo levemente tostado por cima, açúcar de confeiteiro e canela salpicados em abundância. Deu uma mordida, tirou uma foto e postou: “Saboreando o famoso pastel de Belém, em Lisboa. O original”. Porém, assim que ela clicou em ‘publicar’, o pastel voltou de dentro dela num vômito que mais parecia um urro do capeta (as pessoas sentadas perto dela pularam de suas cadeiras, com medo dos jatos que saíam de sua boca). Com certeza foi alguma coisa que ela tinha comido no avião ou no hospital, que já estava ali, pronta para explodir. Não deve ter sido culpa do pastel... Enfim... Dali Camila foi a uma farmácia, onde tomou um remédio para o estômago. Sentindo-se melhor, pegou o trem de volta ao centro.

“Lisboa é linda”, disse Camila olhando os prédios do Rossio, enquanto caminhava em direção ao elevador de Santa Justa, uma bela construção neogótica do final do século XIX. Entrou no elevador calmamente, sentindo-se uma verdadeira angolana, e se acomodou na cabine bem em frente ao vidro, de forma a ter uma vista privilegiada da cidade. Quando o elevador estava na metade do caminho, de repente, um cachorro pastor alemão começou a morder a barra da sua bata. O dono do cachorro, que parecia um policial, fez uma cara desconfiada e deixou que o animal continuasse a incomodá-la, o que a revoltou, e ela gritou: “Faça alguma coisa, seu idiota”. Mas ele não fez nada. O cachorro então rasgou a bata de Camila, e do buraco aberto no tecido começou a sair um pó branco que imediatamente o dono do cachorro (que era mesmo policial) descobriu ser cocaína.

Camila foi presa em Lisboa por tráfico de drogas. Passou cinco dias numa cela apertada até conseguir provar que a sua mala tinha sido trocada no aeroporto e que aquela bata não era dela.

Ao sair da prisão, pegou o metrô até o Chiado, tirou uma foto de uma bela construção do século XVIII e postou: “Tive problemas com a internet em Portugal essa semana. Gostei tanto de Lisboa, que ainda estou aqui. Cidade maravilhosa”.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 09/03/2013
Reeditado em 09/03/2013
Código do texto: T4179952
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