A solitária escrivaninha na Dona Francisca

Mesas ovais, em forma de gota, de sei lá o quê, gaveteiros móveis e outras bossas que são oferecidas aos consumidores enterraram as escrivaninhas. Pesadas, muitas de madeira maciça, uma linha de gavetas em cada lado do espaço para as pernas, não combinam mais com certas palavras hoje em moda, como “lay out”, ergonomia, 5S e por aí vai.

Era uma dessas, colocada ao lado de uma curva da Dona Francisca, quase todas as gavetas abertas.

Quem a pôs lá? Por quê?

Seria um escriba solitário, pensando nos instantes de descanso do labor, quando miraria a montanha à frente e, à esquerda, o vale que deságua em Vila Dona Francisca e Rio da Prata adentro? Não precisaria de ar condicionado, bastaria capturar a brisa que habita aquela altura; a decoração mudaria conforme os humores do Arquiteto ou dos ares: verdes paredes, salpicadas de cores floridas, neblínicos espaços, assustadoras tempestades, noites de pirilampos galácticos e pétalas nascendo por entre seus pés.

E se fosse um velho empresário a quem o zelo da conservação não permitiu passos de modernidade e, desiludido, resolveu abandonar a escrivaninha que desde seu avô o acompanhava para que o tempo que lhe levava os sonhos a levasse também, carcomida pelas chuvas e pelo sol inclemente, ficando ambos como velhos retratos em preto e branco já amarelados, revistos de passagem em uma ou outra nem tão nostálgica reunião de família?

Um poeta, quem sabe? A lápis escrevera seus desejos e entregas em papéis cuidadosamente guardados nas antigas gavetas à espera do dia de compartilhar. E o dia não veio e o desejo foi negado e não houve entrega. Enlouquecido de amor, abriu as gavetas e, uma a uma, retirou as folhas e rasgou a poesia, largando os mil pedaços ao vento. Um caleidoscópio de declarações espalhou-se pelos ares. Deixou as gavetas abertas para que perfume deixado pelas palavras se dissipasse para sempre e fizesse companhia às folhas, ao orvalho, à neblina, ao vale e aos pirilampos.