Crônica de um Adeus

Às vezes me pergunto se existe algo mais difícil do que se despedir de um ente querido. E hoje descobri que existe.

Pensando aqui me lembro do primeiro dia em que ele chegou comigo em casa: era um pirralho ainda, chato e barulhento que eu insistia em chamar de carniça. De imediato minha mãe o defendeu e disse que o nome dele era Frederico, então a partir dessa bronca, sempre o chamei de Fred, para encurtar.

Chegou assustado, afinal não havia nascido ali, era um novo membro da família, adotado e que precisava ganhar seu espaço. Mas não levou muito tempo até que ele se tornasse da família.

Lembro-me das vezes que brincamos, jogamos bola, das brigas que tivemos e que logo depois foram esquecidas com um abraço ou um afago. Lembro-me da alegria infantil dele quando, ele que jovem e incauto não podia sair de casa, via chegar minha mãe, meu pai, meus irmãos ou eu mesmo.

Isso faz quanto? 10, 12 anos mais ou menos? O tempo passa e não perdoa ninguém, e aquele olhar curioso e ingênuo (mas que escondia um temperamento genioso que surgia às vezes) foi sendo substituído por um olhar mais maduro, mais sério. A proximidade com meu pai foi crescendo, se tornaram uma dupla. Acho que o Fred era o único que conseguia ver algo de bom nele ainda e talvez por isso não o abandonou.

Quando ele chegou tinha uma vasta cabeleira toda cacheada, parecia até uma ovelha às vezes, mas isso o tempo também levou. O cabelo foi rareando (assim como o meu) e aquele brilho de inocência que ele tinha e que com o tempo se transformou em experiência e segurança, foi sendo ofuscado por uma camada azul que indicava que a velhice estava chegando.

Acho que quando alguém conquista seu espaço onde antes não tinha e assim sendo se torna “da família”, esse laço se torna mais forte do que os laços de sangue. Ele não era de falar muito, mas nem precisava. Os olhares trocados diziam tudo, os gestos, a postura. Não havia necessidade de conversas longas e cheias de palavras que só poderiam criar mal entendidos.

O tempo chegou e levou a juventude embora e em seu lugar deixou males que foram se agravando. Problemas cardíacos, uma lesão no fígado, problemas de visão e por último uma trombose que o paralisou da cintura pra baixo.

Não sei se todos sabem, mas o Fred era meu cachorro, ou melhor, era o cachorro que vivia com minha família. Não era nosso, não era uma propriedade ou algo assim para ter um dono, ele era da família e talvez o melhor membro de todos. Não sabia o que era egoísmo, não sofria das mágoas que nos assombram, não guardava rancor e mesmo quando era enxotado, continuava a simplesmente amar a todos. Realmente acho que ele conseguia ver o que ainda restava de bom em cada um de nós e isso vai fazer falta demais.

E hoje estou triste não só por saber que ele morreu, mas triste porque eu tive a responsabilidade de decidir que ele iria morrer hoje.

Como diz Roland Deschain, um personagem de uma série de livros do Stephen King (A torre Negra) “um pistoleiro faz o que faz não porque as consequências podem ser boas ou ruins para ele. Um pistoleiro faz o que faz porque simplesmente é o que tem que ser feito”. Hoje eu entendi o que isso quer dizer e o peso que essa frase encerra. Admito que pensei em tentar uma cirurgia ou algo que pudesse prolongar a vida dele, mas na verdade é que eu apenas procurava uma forma de evitar meu sofrimento, mas não podia deixar que a minha tranquilidade se mantivesse as custas do sofrimento dele.

Então é assim que eu me sinto hoje, mesmo sabendo que fiz o que tinha que ser feito, sinto que não só perdi um irmão, como eu decidi que ele deveria morrer.

Pode haver escolha mais injusta do que essa? Sei que pode parecer exagero, mas quem tem um animal de estimação ou já teve um animal de estimação, sabe do que estou falando, como eu estou me sentindo.

Pois bem, hoje o Fred já não está mais entre nós e acho que sempre me sentirei um pouco responsável por isso, mas nem sempre as escolhas mais importantes que temos que fazer são fáceis e sei que agora, seja lá onde diabos ele estiver, deve ter voltado a ser o que ele foi logo no primeiro dia em que ele chegou a minha casa: Um carniça, chato e chorão que latia para tudo e para todos, mas que vai deixar um enorme vazio em nossos corações.

Dorme bem essa noite Fred, não vamos esquecer-nos de você.