Em nome do meu pai

Por Gilrikardo

Na casa onde vivi meus primeiros anos, não havia energia elétrica nem água “encanada”. Situava-se num bairro pouco distante do centro, pois o trecho era percorrido a pé diariamente pelo meu pai. E num dia de compras, contava eu com quatro ou cinco anos, acompanhei-o, precisava de calçado.

Na ida foi uma festa, imagine alguém que nunca saiu do terreiro da casa estar com todo o horizonte à frente. Não sabia se olhava os carros, as pessoas, as pedras da calçada. Tudo era surpreendente e maravilhoso. Entrava nas casas comerciais e ficava com dor no pescoço de tanto olhar coisas que nem em meus sonhos existiam. Lembro-me do braço de meu pai a levar-me de um lado a outro segurando firme, como alguém que não vai deixar escapar. Junto duas sacolas de lona que aos poucos se avolumaram e então passei a agarrá-las.

Às vezes uma paradinha, papai comentava alguma coisa ou dialogava com alguém e após uns minutos à sombra seguíamos. Ganhei o par de congas, era o tênis da época, na loja calcei-as e saí mais faceiro que ganso novo. Na calçada percebi que já mirávamos a volta. As sacolas estufadas, arroz, feijão, farinha, café, açúcar e mais um montão de coisas que faziam o papi gemer baixinho ao movimentar aquela carga. Olhei para seu rosto e vi o suor escorrer. Ainda devido ao calor e ao esforço, estava vermelho qual um peru. Aos poucos, com passos miúdos ficava para trás, meus pés doiam e eu não lhe contava. Após muitos atrasos, o pai tirou minhas congas e viu os calcanhares em carne viva. O calçado novo esfolara-me até sangrar.

Aí então aconteceu algo que mexe comigo até hoje. Colocou-me nos ombros, com as pernas abertas sobre o pescoço, minhas mãos agarradas em sua testa molhada e quente. Sem a conga meus pés sentiram certo alívio, mas ainda havia um bom trecho a ser percorrido. E assim fomos. Ouvindo os gemidos de canseira pelo peso das sacolas e, para completar, eu pendurado às suas costas. Daquele dia em diante comecei a entender o que era ser meu pai.