De São Luís para uma vida inteira.

Calmamente e de sorriso largo, ele chegava à nossa casa. Sem avisar. Naquele tempo ter telefone era coisa para gente grande. Poucos possuíam a tão cobiçada criação de Grahan Bell na nossa rua. O comum era irmos à farmácia do largo do Cambuci, e a ligação valia por apenas três minutos.

Mas com frequência ele chegava e sempre nos levava vida e movimento. O amigo do meu pai, o grande amigo, jamais o abandonou. Entre risadas gostosas e sinceras, ele tinha sabedoria e uma grande objetividade nas ações e no pensamento.

Criança ainda eu já enxergava o amigo do meu pai como uma pessoa eterna. E como eu gostava do sobradinho que ele e a família moravam no Ipiranga, bem próximo ao museu! Antes, viviam num minúsculo apartamento. Foi onde, pela primeira vez, me ofereceram um bombom Ouro Branco e que me marcou o paladar e a memória para sempre.

Eu compreendi que o sabor daquele Ouro Branco definiria todo o vir-a-ser dessa amizade e respeito.

Foi no sobrado do Ipiranga que, num aniversário da sua filha, ele foi me buscar na salinha onde eu brincava, teve o cuidado de me dar a mão, pois eu enxergava muito pouco, e perguntou se eu queria doce ou salgado. Nos meus 5 ou 6 anos de idade, eu morria de vergonha de dizer que eu queria brigadeiro. Não disse nada e logo peguei um copo de guaraná Brahma bem gelado.

Todos nós ficamos muito, mas muito felizes quando o amigo do meu pai entrou na faculdade. Era 1970 e falava-se em fazer faculdade , que seria muito importante e que “sem estudo não daria mais”. Ele, atento às mudanças do mundo, resolveu cursar Madureza à noite (que depois virou supletivo). Fez vestibular e passou numa faculdade do interior, de final de semana. Mal saiu o resultado, foi à nossa casa e anunciou a vitória com um brilho único no olhar. Naquele tempo, eu, com 12 anos, achei o Matos um herói. ENTRAR NA FACULDADE!!! Isso não era prá qualquer um naquele tempo. Ele merecia, se esforçou muito e estava tentando um horizonte maior... e se cansou de convidar o meu pai para também cursar Direito, mas a recusa foi categórica. Infelizmente.

Numa dessas visitas, estávamos de saída para fazermos uma viagem ao Paraná. Iríamos de ônibus naquela vez. Imediatamente ele decretou: “eu levo vocês”. Os meus pais agradeceram rindo, pois jamais caberia naquele fusca vermelho uma família com 6 pessoas e mais o motorista. Não teve jeito! Com a maior gentileza, um sorriso Colgate, ele nos levou com malas e tudo. Foi muito divertida a entrada no carro, a acomodação e o carinho e a inigualável amizade, o bom humor e a presença do Matos na nossa vida.

Maranhense de São Luís, ele chegou a São Paulo com poucos recursos. Arrumou emprego na mesma empresa do meu pai, no qual era o seu patrão. Um dia, o Matos aprontou alguma e o meu pai, no seu perfeccionismo inimitável, lhe aplicou uma suspensão e isso acarretaria a perda de um dia de salário. Sempre o meu pai contou que ele, após saber da decisão, tirou do bolso um lenço e enxugou uma lágrima. Passaram a ser como irmãos a partir dali.

Com ele aprendi o valor da empatia. Numa das inúmeras vezes que o meu pai esteve internado na Beneficência Portuguesa, ele foi buscar o meu irmão e eu para uma visita. Teve a serenidade e a gentileza de levar os filhos, ainda crianças e sem condições de tomar o ônibus sozinhos, para ver o pai. Na saída do quarto, ele abriu os braços, nos envolveu, sorriu para nós e nos levou de volta. Até o fim dos meus dias vou agradecer o Matos por isso.

Foi também meu padrinho de casamento. Claro que sim. E ainda deu o carro para que eu pudesse chegar à Igreja.

Com o Matos eu aprendi o respeito pela dor alheia, o suportar um problema de saúde da filha que seria para sempre, mas jamais se lamentando. Aprendi o que é presença e estar sempre de coração e portas abertas do carro para nos levar a qualquer lugar e a qualquer hora. E percebi o quanto era importante dar opiniões abalizadas e sérias em situações difíceis e até insolúveis.

Muito da vida eu devo a ele.

Quando eu soube da sua morte, eu chorei muito. Estava indo embora uma das pessoas mais sensacionais que conheci. Através dele percebi que o companheirismo é o grande sinônimo de ser cristão, embora ele não tivesse uma religião definida. Entendi que a presença ativa é o grande retrato de que a vida vai vencer, a graça vai triunfar, a boa gargalhada vai ter lugar mesmo no meio das grandes misérias humanas.

Eu posso passar a eternidade inteira te agradecendo, Matos. Você foi o grande amigo da nossa família em momentos terrivelmente difíceis e você foi o grande maestro das melhores melodias na nossa solidão.

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 15/03/2013
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