Uma pequena guerra

Por que nós, seres humanos, temos tanta fascinação por pezinhos? Pezinhos, patinhas, pegadas de dedinhos delicados... talvez porque tenhamos a sensação de que são estes mesmos pequenos adendos do corpo que um dia levarão seus donos para longe? Ou é a dimensão que nos enternece, filhotes que nos tocam a alma de bichos que somos, uma ligação perdida em meio a milênios de evolução durante a qual convivemos, filhotes e adultos, animais e humanos...

Vi as pegadas na cozinha. Patinhas minúsculas, graciosas, sobre minha pia. Enterneci-me com as marquinhas do bichinho mas a seguir enojei-me com seus dejetos. E o misto de carinho e repulsa me fez prever que experimentaria um tormento irracional, fora da minha capacidade de compreensão.

Bichinho, que pena que o destino nos uniu. Azar seu, azar meu. Queria que você nunca tivesse vindo, jamais tivesse entrado em minha toca. Agora é guerra, e na guerra nos aproximamos, eu mais perto de sua irracionalidade e ambos tentando lutar pela sobrevivência. Sei que é uma luta injusta – ainda que você me cause arrepios de pavor, com artimanhas próprias que eu desconheço, apenas meu cérebro é maior e mais pesado que seu corpo todo. Creio que tenho vantagens competitivas (as lojas estão lotadas de armadilhas e venenos apropriados), mesmo que você ganhe em número: são quinze da sua espécie para cada um da minha, nessa cidade de subterrâneos que você conhece infinitamente melhor que eu.

Mas agora é guerra, e na guerra vale tudo. Torno-me bicho protegendo minha prole, assim como você. Defendo meu território com unhas e dentes, paus e pedras, ratoeiras e substâncias mortais, com um ódio que nem sei de onde vem e que nem imaginava que possuía. Pelo contrário, amaldiçoo nosso encontro, pois vi as pegadas de suas patinhas delicadas e meu coração se encheu de ternura ancestral. E agora devo eliminá-lo...

A guerra, bichinho, é um parênteses na sofisticada evolução dos seres de minha espécie. Agora sou apenas um animal acuado lutando pela minha sobrevivência - exatamente como você.