Minha primeira (e última) vez

Após meses de deliberação, refletindo comigo mesmo se valeria a pena desmistificar mais uma colorida, porém fictícia, página de minha vida, cheguei à conclusão de que “truth is stranger than fiction” – portanto, para que atinjamos um full circle, começo esta crônica do mesmo jeito que comecei a primeiríssima desta série: com o episódio da prostituta em “Viagem por Kishinev”. Como já explicado para quem leu esta crônica em particular, esta personagem é um composto de duas mulheres de minha vida: a segunda receberá seus devidos tributos aqui.

Relutei em contar esta história por tanto tempo por pensar que, se a contasse, julgariam que estou apenas me aproveitando da pobre e inocente garota que foi uma de suas protagonistas (junto a mim) para conseguir dinheiro e prestígio com um relato sensacionalista, um dos mais sensacionalistas dos quais participei até então; mas quem me conhece sabe que, escrevendo por escrever, de graça, desde que me entendo por gente, nunca pensei (tampouco o quis) ganhar dinheiro às custas de quem me lê. Deixo esta página registrada pois quero que a garota a encontre algum dia, e se lembre de mim com carinho – o mesmo carinho que a ela dedico. Assim sendo, passemos à minha história – mais uma triste história de algo que poderia ter sido, mas não o foi.

Por grande parte de minha vida sempre me considerei um homem assexual: tive (e ainda tenho) muitas amigas mulheres, e na medida do possível sou com elas bastante tátil. As abraço, beijo-lhes a testa e as mãos, faço carinhos em seus cabelos e até lhes seguro as mãos ocasionalmente, e para mim não há nada melhor num relacionamento do que tais gestos de afeto. Em se tratando de relacionamentos românticos, no entanto, a perspectiva de um coito era algo que eu enxergava com um certo ar de desinteresse, até mesmo repugnância: a razão deve estar enterrada em meu subconsciente, mas por ora não sinto vontade de procurá-la. Pois bem – até eu ter conhecido a heroína de “Meu filho namorado”, meus relacionamentos foram todos platônicos e desprovidos de qualquer tipo de toque; quando aquela mulher me tocava, era a única que me dava o mais perto que até então sentira de tesão. Mas, como todos já devem estar muito bem cientes, ela não batia muito bem da cachola.

Desde então, eu, que nunca me importara com tais emoções e sensações, passei a sentir muita falta daquilo – pela primeiríssima vez em toda a minha vida soube o que era ser sexualmente frustrado. As dores de todos os meus amores prévios me atacaram com forças redobradas, e passava os dias a lamentar a primeira vez em que pus meus olhos numa mulher. Meu desespero foi tamanho para voltar a experimentar os prazeres do sexo que optei por uma solução igualmente desesperada: sem qualquer experiência prévia, sem nem ao menos ter chegado a me engajar num coito, quis recorrer àquelas mulheres adeptas da “profissão mais antiga do mundo”. Felizmente, em nossa era de tecnologia, tudo é fácil, então muito poucos foram meus escrúpulos para fazê-lo – poderia inclusive citar aqueles versos de Álvares de Azevedo àqueles que quisessem julgar-me:

“Oh, não maldigam o mancebo exausto

Que no vício embalou, a rir, os sonhos

Que lhes manchou as perfumadas tranças

Nos travesseiros da mulher sem brio!”

Mas deixemos a poesia de lado por ora.

Entre tantas belezas decadentes e artificialmente forçadas escolhi uma que mais me chamou a atenção; e aqui devo explicar que uma mulher só aviva meu interesse quando me lembra da criança dos meus sonhos do passado. Assim sendo, tenho um fraco por mulheres pálidas, magras e pequeninas, de olhos grandes e nariz de estátua – e aquela era exatamente assim. Seu cabelo era cortado num simétrico bob e uma franja obscurecia seu olho direito; era bonita… mas o que mais me atraiu não foi sua aparência, e sim o ar misterioso que evocava. Sua expressão facial parecia querer dizer-me algo… Era triste e compenetrada, coisa que, pelo menos de acordo com meu pouco conhecimento, me pareceu fora do normal. (Submetendo-me aos risos de um leitor mais experiente que eu nestes assuntos, advirto-o que tudo o que sabia a respeito desta classe de mulheres vem de velhos, empoeirados livros de ficção.) Seu nom de guerre era Françoise Sartre – pomposo e um tanto quanto pretensioso. Não revelarei seu nome verdadeiro, que ela haveria de contar-me, para proteger sua integridade. Optei por chamá-la, pois.

Era uma das derradeiras semanas do ano; minha família estava fora para celebrar a iminência do Natal e só voltaria na semana subsequente. Portanto, estava eu livre para fazer o que bem entendesse. Depois de um tempo escutei uma voz chamar-me ao portão – era a garota. Tratei-a com cortesia, ainda que minha vergonha me fizesse atropelar as palavras; ela me retribuiu de forma morna e quase carinhosa. “Sou um cliente pagador, afinal”, pensei. “Decerto me tratará com bondade pois sou meramente seu ganha-pão.” Reparando bem em seu rosto, notei que era estrábica; por isto o motivo de ocultar seu olho. Julgo que demonstrei uma certa indiscrição ao fazê-lo, pois reparando que eu me fixara em seu leve defeito, ela me respondeu, bem-humorada e sem perder a compostura: “Não vale dar para trás agora! Já sabia que meu nome era Sartre!” (“Então ela é verdadeiramente inteligente!”, pensei uma vez mais, numa nova demonstração de minha ignorância a respeito desta classe.)

Conversei sobre algumas frivolidades; ela se demonstrou bastante receptiva. Quando finalmente quis levá-la ao meu quarto, ela respondeu:

“Não vou fazer sexo com você. Pondo meus olhos em você vejo que é inseguro e inexperiente – mas não tem maldade. Não é disto que precisa.”

Não sabia como responder. Temia que aquela noite acabaria sendo um fracasso, e que não conseguiria nem os volúveis amores de uma mulher perdida. “Se acalme primeiro”, disse-me, com sua sonolenta e arrastada voz. “Me parece uma pessoa interessante; caso contrário, não estaria aqui conversando e iria embora reclamando de mais um mau cliente. Costumam me dizer que sou boa ouvinte – por que não se abre comigo?”

Pois sim…! Meu fado me levara a desabafar as aflições de minha existência com uma demimondaine. Estranha circunstância: mas não uma das piores às quais me submeti. Se ela estava disposta a dar-me ouvidos… por que não aproveitar? Levei-a ao meu quarto então; ela se surpreendeu com meus livros. “Sou escritor”, disse-lhe.—“Mesmo? O que escreve?”—“Poesias e afins.”—“Pode me mostrar?”—Li um de meus poemas quaisquer. Ela ficou genuinamente impressionada. “Bastante elegante; algo raro hoje em dia.”—“Você lê?”—“Um pouco, quando tenho a chance. Gosto de filosofia. Conheço um pouco de Nietzsche e Schopenhauer.”—“E não Sartre?”—“Só o conheço de rosto.”—Ambos rimos.

“Certo, então”, continuou a Srta. Sartre. “Pelo menos por hoje, será meu namoradinho. Se deite em meu colo e conte o que o vem deixando tão irrequieto.”

E, assim, a obedeci. Pelo menos naquele momento o colo daquela mulher estranha foi o travesseiro onde derramei as lágrimas contendo meus sonhos – me abri com ela como nunca me abrira antes, e se ela não pôde compreender tudo, ao menos me ouviu com interesse e compaixão genuínos. Ela também compartilhou sua triste história, e o que mais me entristeceu foi ver que aquela garota bonita, gentil e letrada, cujos canais condutores para o conhecimento haviam sido cavados em seu cérebro, mas ainda não irrigados, estava fadada a um destino tão deplorável. “Fazer o quê? Foi o que escolhi”, disse-me. No fim, adormeci em seu colo.

A Srta. Sartre me acordou gentilmente. “Tenho que ir; nosso tempo acabou.”—“Pois bem… Não vai me cobrar? Tenho o dinheiro aqui…”—“Guarde-o para uma outra coisa; afeto não se compra. No entanto… o Natal se aproxima. Por que não me dá um destes livros?”—“Consegue voltar amanhã? Na mesma hora? Posso conseguir-lhe um bem especial.”—“Acho que é possível, sim. Cuide-se… Você é maluco mas tem uma boa cabeça. Seria triste se a desperdiçasse.” Nos despedimos com um carinhoso abraço, e fui deixado sozinho a remoer sobre aquele velho dilema de por que o Mal recai quase que invariavelmente sobre pessoas que não merecem conhecê-lo.

***

Como prometido, ela voltou para me visitar na noite seguinte, e eu lhe presenteara com um exemplar da “Lira dos vinte anos” – sempre presenteio meus amigos mais queridos com livros de Álvares de Azevedo. Seus olhinhos cintilaram de alegria. “Também tenho algo para te dar”, ela disse, humildemente. “É algo simples, mas que tem muito valor para mim. É uma velha foto minha, de dias mais felizes, antes de eu ser obrigada a fazer o que faço. Lembre-se de mim como eu era.” E me estendeu uma fotografia 3x4, demonstrando uma Srta. Sartre muito mais jovem e de aparência alegre e sadia. Ainda hoje a guardo. “Não tenho planos para hoje. Tudo bem se passarmos a noite juntos?”, ela perguntou. Não vi por que não negar; seria o mais perto que eu passaria de uma noite romântica, ainda mais na temporada de fim de ano. Clichê dos clichês – assistimos a algum filme e dormimos um nos braços do outro. Se meu coração infelizmente já não estivesse marcado pela criança, a teria desposado – para melhor, ou para pior.

***

Com os primeiros raios do Sol, a Srta. Sartre me despertou. “Qual é a chave do portão? Preciso ir”, ela pediu. Sua voz tinha uma peculiar nota de urgência. “Está na mesa da cozinha”, respondi, ainda zonzo de sono. Senti-a se levantando e ouvi o barulho do portão se abrir, e a chave sendo atirada para dentro de meu quintal, mas meu sono falou mais alto do que a preocupação e voltei a dormir. Quando finalmente acordei em definitivo percebi o ocorrido; ela se fora sem qualquer explicação. Até pensei que fora roubado, mas ao constatar que meus pertences estavam em ordem senti uma dolorosa pontada de remorso por ter duvidado, mesmo que temporariamente, de seu caráter. Seu telefone fora desativado; tentei ligar-lhe, e apenas a voz robótica da telefonista me respondia. E assim seguiu por meses, até que desisti de procurá-la. No entanto, quis usá-la como um sórdido personagem numa de minhas histórias apenas para alertá-la que me preocupo com sua situação, e espero que algum dia ela reapareça e me diga que minha predição estava enganada, e que está finalmente bem e feliz como o era em seu antigo retrato.

A única coisa que eu próprio depreendi foi que, triste por natureza, não preciso me entristecer ainda mais após um coito como os demais animais, e mesmo ardendo de vontade, nunca procurei mais nenhuma mulher para me aplacar.

(São Carlos, 7 de outubro de 2022)

Galaktion Eshmakishvili
Enviado por Galaktion Eshmakishvili em 19/03/2013
Reeditado em 07/10/2022
Código do texto: T4196868
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