A REVOLTA DOS SALTIMBANCOS

All Animals are Equal

But some animals are more equal than others.

(“Todos os animais são iguais

Mas alguns animais são mais iguais que os outros”)

Animal Farm (“A Revolução dos Bichos”),

George Orwell

Os Saltimbancos estão tocando no meu carro há alguns dias, já. As músicas foram traduzidas e adaptadas por Chico Buarque a partir de texto original de Sérgio Bardotti, que, por sua vez, inspirou-se no conto Os Músicos de Bremen, dos irmãos Grimm.

Comprei o CD remasterizado (o álbum original foi gravado em 1977) por acaso em uma livraria dia desses, porque costumava ouvi-lo na infância. Era para ser um revival. Um doce e inocente revival com igualmente inocentes musiquinhas infantis. Inocente sou eu, de pensar que o Chico, em 1977, iria escrever músicas, mesmo que para crianças, sem umas alfinetadas na ditadura suavemente inseridas na clássica história do Jumento, do Cachorro, da Gata e da Galinha que queriam ser músicos na cidade.

Começo a ouvir a primeira canção, Bicharia, que começa assim, “Era uma vez (e é ainda), certo país (e é ainda)/Onde os animais eram tratados como bestas (são ainda, são ainda)/Tinha um barão (tem ainda)/Espertalhão (tem ainda)/ Nunca trabalhava então achava a vida linda (e acha ainda, e acha ainda)/O animal é paciente, mas também não é nenhum demente/Quando o homem exagera, bicho vira fera, e ora vejam só/. Bem, só não vê quem não quer que os “animais” são o povo oprimido pela ditadura, principalmente os perseguidos: os estudantes, os intelectuais, os artistas e até os trabalhadores que foram tratados como “bestas”, mesmo, pelo ultrajante e repugnante sistema imposto pelos militares. E o “barão espertalhão”, clara referência aos presidentes militares, minha nossa senhora, Chico Buarque é mesmo fabuloso! O cara conseguiu, em plena ditadura, criticar duramente o sistema através de um musical para crianças!

E acreditem os leitores (e confiram, inclusive, comprando o CD, já que as músicas e letras são magníficas), todas as canções têm sentido duplo, todas as canções resumem a ditadura, de maneira inacreditável. A Galinha, que “não consegue mais botar ovos” de acordo com os parâmetros impostos por seu “patrão”, quer sair para cantar, sair pra ver o mundo, quer se libertar : “Mas um bico a mais/Só faz mais feliz/A grande gaiola/do meu país/. “A grande gaiola do meu país”!!! Palmas, Chico! O interessante é que todas as canções contam com vozes infantis, que amenizam (ou pretendem amenizar, e muito), o efeito contundente das letras. É um fabuloso jogo de palavras que enfeitiça e desafia, do início ao fim do musical.

A Gata, na magnífica voz de Nara Leão, menciona aos amigos Jumento, Cachorro e Galinha, a certa altura do musical, “Cantar uma música me custou muitíssimo”, e segue contando sua história, sob forma de uma das melhores canções do musical, na minha opinião, História de uma gata: “Me diziam a todo momento/Fique em casa não tome vento/Mas é duro ficar na sua/quando a luz da lua/tantos gatos pela rua/que de noite saem cantando assim/Nós gatos já nascemos pobres/Porém já nascemos livres/”. Era duro “ficar na sua”, enquanto diversas pessoas estavam nas ruas lutando pela queda do regime militar, muitas escondidas, e outras diversas sendo torturadas nos porões sombrios do D.O.P.S.

Os animais, juntos, chegam à “pousada do bom barão”, que é um dos momentos mais tensos do musical. Então descobrem que seus patrões estão todos reunidos nesta casa, confabulando. Decidem, juntos, dizendo que estão cansados de tudo, que precisam atacar. A luta armada, representada inocentemente por um jumento, um cachorro, um galinha e uma gata revoltados com seus “patrões”! Palmas para o Chico, de novo! Eles não derrotam os barões, mas os barões fogem. O Jumento, então, ensina a “terceira lição do dia”, “Os homens sempre voltam”. Assim, sugere aos companheiros que se escondam. Eles concordam e obedecem, e escondem-se, cantando uma outra canção, “Esconde-esconde, cabra-cega/Tá aqui?/Tá lá?”. Os barões voltam mesmo, e são atacados novamente pelos animais. Os animais dessa vez vencem, e o Jumento alerta-os que só venceram porque uniram suas forças, estavam “todos juntos”. Inicia-se uma das últimas canções do musical, Todos Juntos: “Todos juntos somos fortes/Somos flecha e somos arco/Todos nós no mesmo barco/Não há nada pra temer/Ao meu lado/Há um amigo/que é preciso proteger/”. Uma clara alusão à premente necessidade de união do povo para vencer a batalha reinante no país engaiolado pela ditadura militar.

Além de tudo isso, Os Saltimbancos do Chico é uma inegável e interessante releitura de A Revolução dos Bichos (“Animal Farm”), de George Orwell, de 1945, uma fábula sobre a Revolução Russa de 1917 e o surgimento do regime Stalinista. Na narrativa de Orwell, os bichos de uma fazenda (representando o proletariado da Rússia à época da revolução) reúnem-se, indignados com suas condições de vida e de trabalho e resolvem expulsar o patrão (“Mr. Jones”, que simboliza o Czar Nicolas II) e criar novas regras de convivência entre eles, liderados por um porco (“Old Major”, simbolizando Karl Marx, o mentor intelectual da revolução). Old Major morre, e logo o poder é disputado por outros dois porcos, Napoleon (personagem metafórico para Stalin) e Snowball (o Trotsky de Orwell). Mas logo Napoleon assume de vez o poder, e em pouco tempo, um pequeno grupo de animais, sob liderança de Napoleon, acaba por instalar uma nova ditadura, provando o corrompimento pelo poder, não importanto a natureza do regime, naquele caso, se fascista (o do patrão) ou comunista (o dos porcos).

Metáforas e mais metáforas, é de metáforas que foram construídos os textos de Chico e de Orwell. Metáforas do início ao fim. O medo, quando se escreve, é algo sempre presente, para o escritor. Mas eu fico imaginando o medo (e o prazer, ao mesmo tempo), de Chico Buarque, que escreveu seu bestial manifesto em plena ditadura, e de George Orwell, que concluiu Animal Farm em 1944, mas só publicou-o em 1945, após o final da Segunda Guerra. Que medo fabuloso.

Bem, depois de tudo isso, respiração ofegante, coração batendo muito forte, só resta-me dizer: “Ave Chico. Ave Orwell”. Quanta sutileza. Quanta coragem. Quanta poesia. Penso que a poesia em tempos de guerra é a mais genial que existe.

Clarice Casado
Enviado por Clarice Casado em 12/02/2005
Código do texto: T4198