O SOBREVIVENTE

O sistema de saúde em nosso país merece a nota dez e com louvor. A modernidade e a qualidade da infra estrutura a serviço do povo é algo de fazer inveja a quem quer que seja. O respeito pelo ser humano e o pronto atendimento é algo inenarrável. Não se registra nesta galáxia algo semelhante.

Não existem bandidos ou ladrões nem nas ruas e nem no congresso. Os governantes pautam pela lisura e ética em suas gestões. Tudo funciona maravilhosamente a contento.

Bem, mas vamos a um caso que aconteceu com alguém em outra dimensão; não foi por aqui, foi num lugar muito atrasado, num lugar bem distante do nosso imenso, glorioso e harmonioso país. Talvez em Xiririca da Serra, não sei bem.

Eu apelidei este alguém, daquela distante terra, de sobrevivente.

Sobrevivente diz-se daquele que sobrevive, que subsiste heroicamente, ou que consegue viver apesar das condições desfavoráveis. Alguém que ao sair de um sangrento embate, ou então, ao ser resgatado de uma avalanche, ou então sair de uma UTI de um hospital público ouve, de seu semelhante admirado, dizer: - "Você está vivo, Isto é um verdadeiro milagre!"

Mas, vamos ao caso!

Era um lugar aparentemente calmo, numa tarde cinzenta, fria e chuvosa. Poucas carruagens circulavam pela redondeza.

O sobrevivente era uma pessoa muito importante na aldeia; Já tinha sido guarda, xerife e exercido o ofício de professor. Estava aposentado, mas tinha que trabalhar para completar seus parcos proventos.

A aldeia em que ele residia tinha passado por uma transformação desumana. Ela ficava geograficamente num ponto estratégico, e com isto, muitos gananciosos empreendedores resolveram investir ali.

Foi a desgraça aprovada, assinada e implantada.

Fábricas e mais fábricas foram erigidas numa poluição monumental. Com as instalações das fábricas criou-se a necessidade de mão de obra especializada, e por isto, com a aprovação do MEC (ministério do ensino capenga), montaram às pressas escolas nas coxas, e selecionaram professores pagando miseráveis salários. Os pais tinham que trabalhar, e por isso deixavam seus filhos à mercê. As crianças, pela lei burra, não podiam trabalhar até os 18 anos, e desta forma pululavam as ruas em busca do que fazer. Estavam assim sendo criados os filhos da rua. O berço com isso foi quebrado e os valores encaixotados. A aldeia de tranqüila e familiar, onde todos se conheciam, ficou agitada, nervosa e desordeira. De um ponto ao outro se criou distâncias, e com isso, uma empresa de carruagens resolveu implantar o sistema de transporte coletivo. Com tarifas abusivas, com excesso de lotação e também maltratando os animais que puxavam as carruagens. O médico da família foi deixado de lado e se criou o SRV (sistema rápido de vida). Os médicos nos hospitais tinham que trabalhar obedecendo um sistema de desempenho - quanto mais pessoas atendiam melhor avaliados seriam. O próprio sistema tinha integração com os governantes, com os ladrões, com a funerária e o cemitério.

Pois é, tudo parecia calmo pela redondeza, mas quando o ilustre sobrevivente estava saindo de sua casa a coisa aconteceu. Ao pegar a sua charrete, e sair do abrigo, foi violentamente espancado e abandonado, depois de levar dois tiros de um filho da rua. Esvaindo-se em sangue ele teve forças ainda para trotear sua charrete até o hospital mais próximo.

O médico ao vê-lo, reconhecendo nele a pessoa ilustre que era, e não querendo se envolver nessa morte, mandou-o, assim, de volta alegando que o cavalo não tinha autorização para fazer este tipo de transporte, e que o indecente animal também tinha desrespeitado o ambiente cagando no pátio do hospital.

O sobrevivente na charrete estava desmaiado, todo ensangüentado sem condições de clamar por socorro. O Cavalo, presenciando toda esta brutalidade, relinchou puteado, deu uns peidos e cagou novamente no pátio, saindo em busca de outro hospital. O hospital que ele foi ao encontro era famoso por abreviar a vida dos pacientes. Mas, infelizmente não tinha outro.

O cavalo em louca disparada pelas vielas, avançando lampiões com a luz vermelha, passando por lombadas, passando pelas proibidas canaletas exclusivas para a circulação das carruagens, chegou afinal ao temível hospital.

"Seria talvez a última esperança de salvar a vida do ilustra personagem", pensou o resfolegante animal.

O cavalo não respeitou nada, foi entrando no saguão, passou pelos corredores e foi parar a charrete na porta da UTI.

E o quadrúpede ruminou:

- Com certeza ele está fudido, mas meu papel de salvador eu fiz!

A médica recebeu o corpo ensangüentado do sobrevivente e disse a seus enfermeiros:

- Mais um trabalhinho para nós! quero que vocês, ainda hoje, descartem o presunto, preciso de espaço para pacientes particulares. Sem olhar o moribundo sobrevivente, mas com cara de poucos amigos disse ao cavalo:

- Se manda daqui, animal imprestável e cagão!

Ao ouvir isto, da pestilenta médica, o eqüino pateou de raiva.

Antes de sair, o cavalo fez questão de marcar o território deixando um belo monte de estrume no meio do corredor. Já lá fora, troteando um nervoso trotear começou a relinchar, a todo pulmão, o que viu e ouviu dentro do hospital.

Enquanto isso, lá dentro da UTI, o nosso sobrevivente respirava parcamente, e se perdia em delírio com a redução do oxigênio e droga ADES (autorização desumana de envenenamento do sangue), injetada nele para abreviar a sua vida.

Este seria o fim do sobrevivente? Pelo jeito nada poderia salvá-lo!

Mas, do lado de fora do matadouro...

O povo, ao ouvir os relinchos angustiantes do cavalo, se armou como pode para invadir o hospital.

O sistema de transporte virou um caos, parou completamente, porque todos os cavalos e éguas deixaram de puxar as carruagens, para ir ajudar seu amigo eqüino lá no hospital.

Os policiais armados de espadas tentavam controlar a tropa eqüina e o povo enlouquecido. O governante aproveitou a oportunidade, subiu num caixote e começou a vomitar promessas: "Eu prometo que vou melhorar a aldeia; vou combater o crime e a desordem; vou..." não chegou a completar a frase recebendo na boca um monte de estrume.

E lá na UTI o sobrevivente já começava dar sinais de que entregava os pontos; Começou a espichar as canelas freneticamente; A médica e enfermeiros, vendo isto, felizes esfregavam as mãos.

E o tic tac de um relógio comia pacientemente o tempo.

Será que o sobrevivente viverá?

E, finalmente o povo, em histeria total, ao som da orquestra de relinchos, invadiu o hospital arrancando da morte o sobrevivente.

Carregaram-no rapidamente até deitá-lo junto a um ancião que tinha sido médico de família.

Aplicou ventosas e deu de beber chá medicinal.

Os cavalos e as éguas, em trote gigantesco, ao adentrarem o hospital, soltaram montes de esterco por todos os cantos, e conduziram, com coices na bunda, a médica e as enfermeiras para o calabouço.

Aquele dia ficou como um marco histórico na aldeia, mas a merda do sistema de saúde, do transporte, do ensino e da governança continua na mesma.

Mario dos Santos Lima
Enviado por Mario dos Santos Lima em 23/03/2013
Código do texto: T4204433
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