Bem - humorado, embora cético     




 
                        Caro leitor,  caríssima leitora, talvez esteja “chovendo no molhado”  ao me sentir desalentado com a humanidade. Tantas  loucuras, tantas ingratidões, tantas injustiças, tantas desigualdades e tantas deslealdades, que, em certos momentos,  desejo ardentemente ser cético.  Não acreditar em nada mais. Penso que sofreria menos. Nessas horas recordo-me de meu pai entregando toda a sua grande biblioteca espírita para um emissário de um Centro Espírita.  Perguntei, assustado,  porque ele estava  fazendo aquilo.  -  Não tenho mais interesse, respondeu-me ele.  Não tive coragem de perguntar as razões e nem ele se dignou a me dar razões. Com convicção, apenas disse que não se interessava mais..  Vestiu o paletó e saiu para o seu trabalho. Nunca mais falamos sobre isso.
                        Claro, jamais  seria um  Frei Romão, de um dos contos de Machado de Assis, que recolhido em um convento, por ter tido na mocidade  uma desilusão amorosa, quando estava morrendo, mandou chamar o Reitor do Convento e segredou-lhe: - “ Odeio a humanidade”.  Dito isto, morreu, deu seu último suspiro. No momento, bem apavorado com a mediocridade que se alastra em nossa sociedade, seu eu morresse hoje, seria bem capaz de chamar meu melhor amigo, que poderia ser o médico Dr. Antonio Carlos Seminale, um homem idealista, e lhe diria, com todas as letras:   -  “Cuidado com a humanidade”.
                        Não, amigos, não estou louco como o Frei Romão, nem me internaria num asilo de malucos, como fez o Alienista, outro saboroso conto do nosso Machadinho.
                        O que quero dizer, com este meu estado de espírito, talvez um pouco “down”, um pouco pra baixo, mas nem tanto, é que venho observando a dificuldade de todos nós em confiarmos uns nos outros.  Diariamente, as pessoas me falam que, infelizmente, não podem confiar no ser humano. Ora, essa constatação é terrível e me faz lembrar a máxima de que  “o ser humano fracassou”. Melhor seria o fim do mundo, etc. , etc.
                        Essa crise humanitária é tão grande e vem de longe, desde as primeiras noites do tempo, que não há idealismo, exortações, nem poemas amorosos que resistam e deem fim a esse lastimável estado de coisas.
                        Ainda procuro resistir à nossa época com bom humor e para animar a nossa conversa,  queridos amigos, vou sintetizar um velho conto do Machado de Assis, ao sabor da minha lembrança, além de atualizar para o nosso tempo certos dizeres.  Não sei se já disse  que estou  fazendo uma pesquisa  da vida e obra do nosso maior escritor.  Estou descobrindo coisas fantásticas e confirmando a perenidade da obra dele.  Os tipos humanos continuam os mesmos de duzentos anos atrás. Os temas do ciúme e traição são uma constante.  E como continuam constantes  nos dias de hoje. Logo  me lembro do advogado justificando o  ciúme dele pela mulher com essas palavras do grande Machado:  - “ Minha mulher não tem índole perversa, reconheço,  mas é uma cabeça de vento, muito amiga de cortesias, de olhos ternos, de palavrinhas doces, e a leviandade também é uma das portas do vício”.  
                        Mas vamos encerrar,  rindo um pouco com o conto que mencionei acima.
                        Estava pra fechar as portas do seu Tabelionato, na rua do Rosário,  o Sr. Vaz Nunes. Eram quase cinco horas da tarde.  Eis que aparece um homem à porta e entra resoluto, cumprimentando o Sr. Vaz.  -  “ Não está me conhecendo?  -  Não, responde o Tabelião. – Sou o Custódio e nos conhecemos na festa de Natal, na casa do Ministro da Justiça. O senhor estava ao meu lado, em  uma mesa grande e até me saudou.  – Ah, sim, em que posso servi-lo?
                        É bom que saibam os amigos que o Custódio era daqueles  caras que nasceram para ser ricos, embora fosse paupérrimo e com o agravante de não gostar de trabalhar. Já o Sr. Vaz Nunes era um homem experimentado e profundo conhecedor da alma humana.  Quando lavrava um testamento, ele conseguia ler o que estava na alma do testador, suas intenções ocultas...
                        Prossigamos na narrativa ou diálogo.  – “ Sr. Vaz, vim aqui para lhe pedir um empréstimo de  R$ 5.000,00 (cinco mil reais).  Preciso dessa quantia para me tornar sócio de uma pessoa que está montando uma fábrica de agulhas, um negócio que renderá muito dinheiro”
                        O nosso Vaz prontamente lhe responde: -  “Infelizmente, não tenho esse dinheiro, é uma quantia muito grande. Se ainda fosse uma quantia pequena...”
                        O Custódio tomou um susto, quase perdendo a esperança  de obter o dinheiro. Já havia pedido a todos os seus amigos durante o dia todo. O Vaz era a última tentativa.
                        -  Bem,  então o Sr. poderia me emprestar R$2.500 e eu conseguiria a outra metade com algum amigo.  -  Impossível, Custódio. Não tenho esse dinheiro. É muita grana.
Veja bem, Custódio, o Sr.me vê        como Tabelião e pensa que tenho muito dinheiro. Ganho dinheiro,sim,  mas também tenho muitas dívidas. Não tenho esse  dinheiro.
                        E o senhor Vaz Nunes começou a vestir seu paletó. Pegou sua carteira de dinheiro, que estava em cima da mesa e colocou no bolso interno do paletó. Foi quando o Custódio insistiu: -  Mas pelo menos mil reais? -  Também não tenho, respondeu o Vaz. – Então, quinhentos reais. Quinhentos reais todo mundo tem.  -  Também não tenho, replicava o Vaz.  -  Então, cem reais, isso o senhor não pode negar que não tem. -  Também não tenho, amigo. Olha, preciso fechar o escritório.
                        Nessa altura, o Tabelião resolveu mostrar e abrir a sua carteira e disse: - “ Veja, só tenho aqui dez reais, duas notas de cinco. O que posso fazer é repartir com você, dando-lhe cinco reais, aceita?  O Custódio aceitou na hora e saiu pela rua, com a mão no bolso da calça, agarrando a nota com toda satisfação. E ia pensando: era o lanche certo, logo que entrasse no primeiro boteco.