Caso do tempo

Silenciosa, ela foi subindo as escadas daquele sobrado geminado do Cambuci.

Eu ia acompanhando os seus passos solitários e tristes com olhar de ternura calada. Eu não sabia o que a minha avó iria fazer. A minha avó gostava de falar com precisão, com alguma certeza e não gostava de choro ou lamentação.

Foi naquela noite de outono de 1973 que chegou, lá das Minas Gerais, a notícia: a tia Julieta havia morrido.

Irmã da minha avó, a tia Julieta sempre fora das Alterosas. Filha de imigrantes italianos, conhecera de perto a pobreza,aquela mesma que a minha avó trazia das suas lembranças: “em casa a gente nem tinha onde se sentar”. E mais: dizia que era bom cozinhar quando se tinha com o que. Lia os jornais quando alguma folha chegava como embrulho de alguma compra feita em Poços de Caldas. Lia várias vezes a mesma noticia.

Alguns anos mais velha que a minha avó, a tia Julieta também era doce e com o coração encharcado de afeto. E gostava de saber notícias da família. Atenciosa, queria saber se todos estavam bem, conhecer as novidades, estar viva dessa forma. E como nos tratava bem!

Morava com uma das filhas, também viúva, numa casa de esquina na cidade mineira chamada Machado, e o alpendre daquela casa conseguia até dialogar, no seu silêncio e mansidão, com o cheiro, a memória, as ladeiras e as histórias das outras casas que seguiam pacatas. Era o cheiro de quitanda que envolvia aquele espaço carregado da doce poesia do cotidiano: a rosca ainda quente saindo do forno a lenha, o pão de queijo, o pão bem crescido, a broa... tudo para uma semana e sempre com café quente e passado no coador de pano. Dali, daquele alpendre, saíam acenos, sorrisos, recordações. Pessoas passavam para as procissões, para a folia de reis, festas, casamentos e bailes. Iam também ao footing às quartas e sábados na praça central, bem próxima. Iam e vinham no andar essencialmente macio de quem vive o abraço caloroso das montanhas. As mesmas montanhas que tentavam aproximar a terra do céu com a melodia das longas existências .

O que será que a tia Julieta imaginava além das montanhas? Certamente, daquele alpendre, ela contemplava algumas vezes . O seu olhar deveria se esticar para além daquela vegetação exuberante da ainda mata atlântica. Pensava na vida possível de construir, no que pôde e não pôde conquistar. Quem sabe pensava nas perdas, inúmeras perdas, os filhos que, pequenos, se foram. O que será que sonhava?

Ficou dali, do alpendre, uma foto da minha avó com a tia Julieta. Foto colorida, ambas sorrindo, batida pela minha mãe. Ao fundo, as montanhas, com seus pássaros, a arara azul pequena, mas também com a onça pintada escondida, a jaguatirica e o mico-leão dourado. Aquelas montanhas também exibiam as suas palmeiras, bromélias, begônias, orquídeas. E muito pau-brasil e a beleza do jacarandá .

Da tia Julieta eu guardei um silêncio tranquilo e a certeza da vitória da vida. Eu guardei a sua emoção, algumas lágrimas quando voltávamos para São Paulo. Ela sentia saudades quentes e, com segurança, lembraria centenas de vezes das conversas, dos abraços, dos bons momentos vividos naquela semana.

E a minha avó subiu as escadas do sobrado. Lentamente, no silêncio. Sozinha como nunca.

Passados alguns poucos minutos, fui ao seu encontro. Ela chorava copiosamente ao lado de uma vela acesa para Nossa Senhora.

Sentei-me na cama ao seu lado, apenas com a luz da vela, e deitei a cabeça no seu ombro esquerdo

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 25/03/2013
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