O Pichador

Tudo bem que vivemos em um país livre e cada um se expressa da forma como quiser. Você pode ter um celular e mandar SMS, ser cadastrado em uma rede social ou ter amigos pra mandar e-mails ou quem sabe até cartas. Só que nem todo mundo é obrigado a te entender dependendo da forma como você escreve. A minha namorada pode chegar em mim com uma camiseta escrito “ti amu mt” e não vou saber se ela está querendo dizer que me ama muito ou que é apaixonada pelo estado de Mato Grosso, por exemplo.

Pensando assim, algum maluco pegou a parede sem nada de importante escrito além de propaganda política (como se alguém se importasse com elas) na avenida de entrada em um bairro bem populoso e pichou da noite pro dia a frase “o alfabeto é composto por 26 letras. Use-as bem”. O pessoal estranhou uma pichação como aquela por não ser escrita com aqueles rabiscos de pichador comum ou por não ter nenhum palavrão. No dia seguinte, outras paredes tinham mensagens como “existem 3 tipos de encontros vocálicos: ditongos, tritongos e hiatos” ou “alguns encontros consonantais podem ser considerados dígrafos” e o povo achou divertido. Até outro pichador deixou a mensagem ao lado de um ensinamento sobre acento prosódico e acento gráfico a mensagem “e pra quê eu vou usar isto na minha vida?” e ele respondeu “depende o que fará da sua vida, além de pichar”.

Como o tal pichador trabalhava sempre à noite e em dias aleatórios, a polícia não conseguia pegá-lo. As pessoas não tinham informação nenhuma sobre quem era ele ou ela. Teve até um incidente na delegacia porque um sargento havia registrado um boletim de ocorrência de uma briga entre torcedores de time de futebol perto “daquela rua onde há uma pichação que ensina que retificar quer dizer corrigir e ratificar significa confirmar”. O capitão não podia mais aturar aquilo e contratou até uns professores para ajudar na investigação. Com o salário escasso pago pelo Estado, muitos ajudaram.

Começaram por conclusões óbvias: era uma pessoa inteligente, atualizada (pois seguia o Acordo Ortográfico) e estava munida de bons livros de gramática e técnica de escrita, além de muita tinta. Um jovem policial havia percebido que ele tinha metódico: quem entrasse no bairro, começaria vendo lições de fonética e fonologia e depois passava para Morfologia e Sintaxe. Se pegasse uma travessa, viela ou rua não muito usada como via de acesso encontraria uma dica para aquelas dúvidas bem comuns para a população como a diferença entre “onde” e “aonde” ou o uso adequado dos “porque/ por que/ porquê/ por quê”. Ele até tentou comunicar isto aos seus superiores. Só que pessoas novas ou inteligentes demais raramente têm atenção na sociedade por questões do âmbito político de manterem velhos paradigmas. Daí ele mesmo investigou o caso um dia ficando de tocaia em uma viela que sabia que seria alvo do famigerado criminoso.

O policial esperou a madrugada toda escondido dentro de um carro quando um velho apareceu com uma lata de spray na mão. Calmamente ele escreveu a diferença de “mau” pra “mal” quando foi abordado. O jovem descobriu que ele era apenas um professor aposentado, que queria ajudar pessoas com dúvidas comuns ou quem sabe ainda passar algo novo. Uma atitude doida, porém sensata. O homem da lei guardou a sua arma e não teve escolha senão perguntar:

― O meu irmão anda muito mal na escola. Quanto o senhor cobra por aulas de reforço?

E assim a polícia nunca pôde prendê-lo. Por outro lado as notas escolares do público estudante havia melhorado em 30%. Já era alguma coisa.

Davi Paiva
Enviado por Davi Paiva em 29/03/2013
Reeditado em 02/08/2013
Código do texto: T4213611
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