A BARRIGUDA

A árvore era uma barriguda .Arquitetura robusta e com perfil em elipse alongada; nossa Baobá brasileira. Tronco de quase 4 metros e um perfil arredondado com altura de quase 20 metros. A dita árvore tinha sido motivo da derrubada do prefeito há 6 anos. O projeto, na época, era alargar a área do cemitério à direita , rumo à Rodovia federal; porém a barriguda estava no caminho. A notícia correu abrasada pela oposição ávida por um motivo negativo da atual gestão.

O povo fez abaixo- assinado e foi às ruas. A Câmara de vereadores fez interferência, e coube a seu presidente – desafeto declarado do edil ampliador de cemitérios – propor uma verdadeira “varredura” nas contas particulares. E para tranquilidade da Barriguda, comprovou-se desvio de verbas federais recebidas pela prefeitura; explicado estava a sala em colonial autêntico e os utensílios de porcelana comprados na capital para embelezar a casa do prefeito.

Passado todo o alvoroço político, a frondosa árvore permaneceu lá e o prefeito foi cassado. Nossa Baobá brasileira ainda hoje é frondosa e sombreira, e abriga em seus braços longos, um estranho grupo de amigos. Digo amigos, por que assim o são desde o nascimento até a juventude, onde os sonhos, amores e trabalho, se encarregou de separá-los. O destino, ironicamente, convoca-os a carregar suas frustrações, desamores e buscas, para serem amparados pela sombra da Barriguda. Não há intervalo de hora que a visão não os encontre lá a sorver descontraidamente a cachaça – bebida tipicamente brasileira - também usada para colocar na carne dos porcos caititus no nordeste brasileiro ,para amolecê-la. A morte atroz e implacável sempre é tema do grupo, e não chega a meter medo em ninguém por lá.

Dona Valda – proprietária do Bar e corretora da única funerária do lugar nas horas vagas, tem lá sua lista com os nomes dos futuros clientes, e a cada mudança no aspecto físico deles, muda a ordem dos nomes no caderninho. Ela não entende de cirroze billiar,síndrome nefrótica e coisas assim; mas não lhe foge à vista: tornozelo inchado barriga inchada.

No tronco da árvore está fincada uma placa talhada de madeira , ofertada por um artesão simpatizante do grupo: SERPIBA – Escritório dos Pés inchados da Barriguda.

A casa de tijolos, sem rebocos, estava encravada no local mais alto da ladeira. Era por lá que passavam as grandes aglomerações de pessoas: as procissões de “Senhora de Fátima”, os blocos gigantescos de carnaval, e também, os cortejos fúnebres. Na sala simples, apenas um sofá – coberto com uma toalha de bordado à mão com estampa do escudo rubro negro do “Sport Recife”- várias cadeiras em plástico, espalhadas em círculo, duas garrafas de café sobre a mesa recém afastada para o canto da parede, e vários amigos ; pra ser exato: nove ao todo.

A um estranho, em primeira vista, aquela reunião bem poderia ser dada como uma festa de casamento, de aniversário, ou algo parecido; digo isso, a ver os sorrisos alargando os rosto, as conversas desinibidas e sem freio, e a abundância de tira-gostos servidos em bandejas de madeira acompanhados de copos até a metade de cachaça.

Porém tinha algo que teimava em discordar das aparências: o corpo de seu Tota – chamado carinhosamente em vida de” seu Boneco” - 3º na lista de dona Valda, que sem avisar, dispensa a sua hierárquica posição e resolve antecipar sua ida deste mundo, vestindo de vez a roupa de “ver Deus”. O enfarte fulminante, debaixo do pé da Barriguda, surpreendeu até mesmo “major Feliciano – primeiro da lista fúnebre – que é tratado agora com a honra de sentar-se ao lado da cabeceira do amigo.

E agora lá estava seu “Boneco”: de fraque – doado pela prefeitura local. Uma sobrecasaca cinzenta escura de botão preto - contrastando com o branco aveludado da camisa de dentro - calça cinza com riscas pretas, muito bem destacada pelo suspensório quadriculado. O sapato, o lenço e a luva : brancos - para combinar com a gravata larga à cobrir-lhe todo o peito – foi um presente da tia - já guardado por tempos para esta ocasião.

O prefeito, há muito tinha vestido a camisa do SERPIBA: pintou de cor branca a árvore até altura de três metros,fincou dois bancos de cimento todos personalizado com o slogan da prefeitura, e incluiu no roteiro turístico “ visita aos amigos da Barriguda”.

Convidado de honra que era naquele funeral, tão logo chegou, deu boa tarde e pediu atenção para uma “palavrinha sobre o “amigo” Boneco:

- Senhores, hoje o amigo Boneco, ilustre componente do Serpiba, e ferrenho lutador, em vida , pela causa dos amigos da Barriguda - fez uma pausa, enxugou o rosto, forçou a emoção ideal para o ambiente funesto - e demonstrando conhecer a Carta-Testamento de Getúlio, desabafa parafraseando:

- Deixa esta vida, deixa a companhia dos amigos, mas entra para a história do pé da Barriguda.