MISSÃO CUMPRIDA!

Contemplando seu rosto sereno, penso na última visita que fiz ao senhor no hospital, quando sua face era pura agonia, a respiração difícil, o corpo dilacerado pelas escaras decorrentes do longo tempo no leito... Sua serenidade de hoje contrasta com essa imagem, mas creio que entendo e tenho as respostas para tantas perguntas que nós todos da família fazíamos ao vê-lo prolongando o sofrimento atroz... Sua mente e seu corpo já há muito haviam pedido arrego, mas seu coração não queria parar para não se separar dessas pessoas que tanto o amam e são amadas pelo senhor...

É pensando nesta trajetória de noventa e um anos que encontro as repostas. Menino de roça, teve a infância marcada pelas experiências simples da vida no campo, em uma família de cinco irmãos que perderam a mãe precocemente e cujo pai logo contraiu segundas núpcias, fazendo com que os filhos tivessem que adaptar-se às novas regras da madrasta e depois ir morar com tios na cidade para continuarem os estudos. As poucas fotografias que documentam esse período, mostram um menino de grandes e assustados olhos azuis.

Depois foram os anos de colégio, que sempre trouxeram boas recordações, que o senhor fez questão de cultivar enquanto foi possível, por meio de encontros periódicos com os ex-colegas. E daí já pudemos extrair um grande ensinamento que o senhor nos deixou: o reconhecimento e a gratidão pelos mestres ! O senhor nunca esqueceu as lições recebidas dos irmãos maristas do Colégio Champagnat, e sempre que podia, exibia o seu Latim...

Formado contador no antigo Ateneu, passou no concurso do Banco do Estado de São Paulo, onde trabalhou até a sua aposentadoria, como funcionário exemplar, deixando boas recordações entre os colegas da época, dois quais hoje poucos ainda estão vivos, como um grande camarada, que vivia “plantando bananeira” e contando piadas durante o expediente de trabalho, mas sempre guardando grande respeito pelo gerente, o Sr. José Engler Pinto. Outra lição aprendemos dessa época: o respeito pelos superiores e o apreço pelo local de trabalho. Em São José do Rio Pardo, onde completou seu tempo de serviço, foi gerente estimado, e quem o viu durante a prolongada enfermidade, questionava porque tanto sofrimento em uma pessoa tão boa..

Sempre foi maçon e rotariano exemplar, e exerceu cargos importantes nas duas entidades.

E o que dizer do marido e do pai? O senhor ensinou, principalmente a mim, seu único filho varão, a como tratar uma mulher, e aos seus três filhos, a ter equilíbrio nas adversidades e a partilhar as alegrias. Hoje, na maturidade, entendo os seus silêncios, e fico orgulhoso quando as pessoas me dizem que estou a cada dia mais parecido com o senhor, no físico e nas atitudes. O senhor passou-me o gosto pela leitura e a habilidade de escrever. Obviamente, temos diferenças, pois meu gosto pela música por exemplo, herdei de minha mãe (não conheci ninguém tão anti-musical como o senhor!), e dentro da minha introversão, sou muito mais extrovertido que o senhor.

Há coisas, papai, que nós jamais esqueceremos, como o seu vocabulário particular, cheio de neologismos e palavras colocadas de maneira jocosa nas mais diversas situações: “estou brenó” para dizer que está sem dinheiro, “tudo em riba do pedido?”, tradução livre de “está tudo bem?”, “Muleca”, apelido carinhoso que dava à minha mãe, “Mutreco”, jeito carinhoso de me chamar, “Tibeleleco” para chamar os netos, e tantos outros... E os netos sempre se deleitaram com seu jeito meninão de ser...

Tudo isso vai deixar muita saudade, papai, mas tenha certeza que essa longa jornada não foi em vão, pois o senhor plantou boa semente. Vá em paz e tenha certeza que nós três vamos cuidar muito bem da mamãe, que mostrou ser uma grande mulher durante toda a sua enfermidade, mantendo-se com dignidade ao seu lado, tendo sempre nos lábios palavras de agradecimento.

Hermes Falleiros

Franca, 05 de abril de 2013