Velhos problemas, Uma reflexão sobre ser médico nos dias atuais.

Vem de tempos quase imemoriais a forma de agir autoritária dos médicos. Algo tão culturalmente arraigado não se extingue por decreto, não se apaga simplesmente por um ato de vontade. Nem mesmo de bom senso.

Guardadas as devidas proporções, ou não, o dogma da infalibilidade papal em muito se assemelha à decisão do médico frente ao paciente e assim como o primeiro, é um mito sem sentido que não se sustenta diante das exigências da modernidade, não carrega verdade objetiva ou subjetiva.

O conhecimento, por mais genial que seja a pessoa, já não cabe no indivíduo, exige outras habilidades que estão fora do seu domínio, obriga à apropriação ética do conhecimento alheio, consentido, compartilhado. Isso nada mais é que o bom e velho trabalho em equipe, atualmente uma imposição de sobrevivência profissional e institucional.

A deficiência na formação do médico, treinado equivocadamente para a auto-suficiência está na gênese de muitos conflitos que em nada contribuem para melhorar a qualidade assistencial.

Se por um lado as grades curriculares das universidades não preparam os médicos para lidarem com os diversos detalhes técnicos, legais, burocráticos e administrativos da atividade profissional, por outro fica patente a incapacidade destes em ampliarem seus horizontes de atuação. Tão pouco as residências médicas cumprem esse papel.

Os jovens médicos chegam iludidos ao mercado de trabalho. A massificação do ensino, longe de democratizar, apenas contribui para a má formação profissional. A estreita porta de entrada, a residência médica, que deveria contribuir para reduzir o problema geralmente preocupa-se, quando o faz, apenas com a forma ou com a técnica mais indicada para abordagem de uma determinada doença, mas desobriga-se de formar o novo médico na totalidade dos processos assistenciais, a tal ponto que o doente parece ter se tornado apenas um detalhe incômodo mas necessário. O sucesso muitas vezes se mede pelo número de cirurgias realizadas. Mas pouco ou quase nada se aprende sobre como o paciente chegou até o ponto de ser operado, dos custos envolvidos, ou do suporte necessário. Não vamos nem falar do ser humano em si, aquele que vai além do caso clínico. Fiquemos restritos ao escopo do atendimento tecnicamente correto.

Existe uma nefasta tendência ao desprezo, herdado das causas acima descritas, por tudo o que não envolve a atividade fim no tratamento do paciente, seja no investimento institucional, seja na própria psique de quem assiste o doente. Tomem-se os exemplos de um paciente na sala de operação para uma cirurgia cardíaca de grande porte, ou o tratamento de um câncer com quimioterápicos de última geração, ou mesmo uma simples sutura. De nada adianta a melhor técnica sem o suporte adequado, sem que o risco seja gerenciado em todas as fases do processo e todos os detalhes sejam pensados, todos os pontos equacionados. Arrogância, gritos e ameaças não operam milagres. Sem o fio adequado a sutura fica comprometida, sem sangue disponível o paciente se esvai após uma cirurgia perfeita ou morre após uma quimioterapia bem sucedida. A melhor técnica pode ser e infelizmente frequentemente é comprometida pelo descuido com detalhes que não são de modo algum irrelevantes e muitas vezes fogem ao cabedal científico do médico ou mesmo das cátedras escolares. A melhor técnica é apenas isso, mais um detalhe na complexa estrutura envolvida em cada atendimento.

O conhecimento tornou-se algo dinâmico, volátil e criou interdependências às quais não estamos habituados. O estresse diário, a falta de tempo, o individualismo crescente, na contramão do que seria minimamente razoável, são fatores que apenas alimentam ainda mais os conflitos.

Os tempos atuais cobram uma nova postura, a necessidade do “não saber”, de se confiar no saber do outro e de criação de mecanismos mais eficazes de comunicação inter setorial e inter pessoal para melhoria de processos. Não são nem de longe mudanças dissociadas da conjuntura social em que a cobrança e a responsabilização profissional são crescentes e a comunicação está cada vez mais acelerada.

A postura do médico auto-suficiente, que tenta fazer prevalecer sua vontade sem argumentos sólidos é anacrônica, obsoleta e temerária diante de uma realidade que nem mais é tão nova. As palavras de ordem na abordagem dos doentes (e não da doença) atualmente são multidisciplinaridade e co-responsabilidade. Proponho o fim do termo tratamento médico e uma nova denominação para o processo de cura do paciente. Que doravante seja chamado tratamento de saúde, com todas as suas implicações, envolvimentos e novas autonomias.

E prezados doutores, aceitem o fato de que não somos mais senhores absolutos da saúde de ninguém. Se é que algum dia o fomos.

Marcelo Froes Assunção

Médico Hematologista/Hemoterapeuta

Um dos inúmeros responsáveis pelo suporte hemoterápico em procedimentos de saúde diversos.

PS: Você é capaz de enumerar todas as pessoas, setores e processos envolvidos em uma transfusão de sangue?

Minha resposta pessoal após 16 anos na área: Eu não sou.