Boato      




 
                        No fim da  década de 1970, fiz um interessante curso sobre menor infrator. O curso ficava em Quintino, terra do Zico do Flamengo, no Rio de Janeiro.  Mais precisamente foi em 1976, quando nasceu minha segunda filha, a Alessandra. Ela nasceu no subúrbio, em Engenho de Dentro, local próximo ao curso de 01 ano que fiz sobre os menores. Tempos de pouco dinheiro... Mas o que quero dizer para os amigos leitores, para despertar logo a curiosidade deles, é que tomei conhecimento nesses meus estudos de um fenômeno chamado boato... Éramos uns 40 alunos. Um belo dia, o professor de uma matéria que não me lembro mais, propôs um exercício.  Ele, professor, daria notícia secretamente de  uma pequena história para um aluno. Este aluno, por sua vez, passaria adiante a história para o colega do lado. O do lado igualmente para o outro colega, até que chegasse ao último aluno. Este último aluno então contaria para todos ouvirem o que lhe narraram.  Por incrível que pareça, a história original do professor foi totalmente deturpada e não sobrou quase  nada do que ele havia falado para o primeiro aluno. A história foi essa: ele havia falado que havia tomado chá na casa de um primo, numa  noite chuvosa e que os dois ficaram com muito medo dos trovões e relâmpagos daquela noite de temporal. Pois bem, o último que ouviu a história nos contou que uma pessoa casada, depois de se encontrar com uma antiga namorada em uma rua escura no Estado do Rio Grande do Sul, foi assaltado,  e teve sua carteira roubada. Que voltou para sua casa, bem assustado, com muito frio, ocasião em que teve a ideia de tomar um chá, o que o deixou aliviado, depois do grande susto. Parece mentira, mas é a pura verdade, pois fiz parte desse exercício e pude constatar como deturpamos, e até incluímos fatos que jamais existiram.
                        Já sabem meus leitores e leitoras que continuo fazendo minha pesquisa sobre o bruxo do Cosme Velho, o Machadinho. A  genialidade dele era tão grande que estou descobrindo fatos vislumbrados por ele e  que vieram a acontecer no século passado. Só conto essa: em um dos contos, o Machado de Assis já aventava a hipótese do Rio de Janeiro deixar de ser a capital da República. E não se assustem, mas ele sugeria que o Rio passasse a ser chamado de Guanabara, o que aconteceu, por um certo tempo,  com a cidade do Rio de Janeiro, que passou a chamar-se Guanabara.   No entanto, com a fusão do antigo Rio de Janeiro, o Rio voltou a ser o Rio que todos conhecemos.
                        E sobre o boato, ele também abordou esse assunto, com o seu bom humor e genialidade de sempre.  Não resisto a contar rapidamente essa estória, perdendo um pouco o sabor das “tiradas” dele, mas que serve para encerrar bem o tema com que comecei a crônica.
                        Fiquem tranquilos os leitores porque serei rápido e resumirei ao máximo, ao sabor da minha memória, naturalmente com alguns nomes trocados,   o conto que bem daria umas dez páginas.  Havia no Rio um boateiro que tinha um prazer quase sexual (o quase sexual sou eu quem diz) em alastrar uma boa fofoca. Eis que o nosso amigo, que vou chamá-lo de Luiz José,  ao encontrar-se com quatro amigos na rua, resolve espalhar uma notícia bombástica. Ele adorava deixar os circunstantes de olhos arregalados.   Ia me esquecendo que havia uma quinta pessoa,  que o Luiz não conhecia, já um senhor de idade. Solta ele a bomba: - Não sei se já sabem que fugiu a sobrinha do Gouveia. – Que Gouveia? O Gouveia da Praça da Bandeira?  perguntou o desconhecido. – Esse mesmo!  Houve um grande silêncio, no que aproveitou o novidadeiro para dar detalhes do ocorrido. Chegou a dizer que a moça, muito bonita, e que ontem mesmo a tinha visto,  fugiu com um soldado, em razão da oposição do Gouveia, tio da moça. E que aquilo era um absurdo, pois a moça amava o rapaz, que, além do mais, era um bom caráter. Por que razão o Gouveia impediu esse namoro?
            -  o Gouveia tinha boas razões, disse o desconhecido. – Ah, o senhor o conhece? – Claro, sou eu o Gouveia, aliás, o major Gouveia.   Luiz José ficou mudo, a cara pálida. Depois de cinco minutos de silêncio sepulcral, o Gouveia continuou: - Ouvi toda a sua estória  e me diverti com ela, pois minha sobrinha não podia ter fugido de casa, já que ela se encontra há mais de 15 dias em Juiz de Fora.  E o senhor acabou de falar que a viu ontem e que ela é muito bonita.  O Luiz José ficou amarelo, verde, branco, enfim, a cara parecia um arco-íris. -  Essa notícia falsa pode ter se espalhado, quero saber de quem o senhor ouviu.  – Não me lembro. Por favor, tente se lembrar porque quero por essa estória a limpo já, disse o Gouveia. – ah! Agora me lembro, foi o Pires, que conheço superficialmente. – Bem vamos ao Pires, onde ele mora?  -  Mora em Niterói, mas temos que ir agora? – Agora, disse o Gouveia. E lá se foram os dois para Niterói. Os dois pegaram a barca na Praça Quinze.
                        Chegando os dois na casa do Pires, o serviçal que os atendeu disse que o Pires havia ido ao Ministério da Justiça.  – Vamos ao Ministério da Justiça, disse o Gouveia. E o Luiz José, resignado, achando uma sorte que o Pires não houvesse ido para Santos, continuou a sua peregrinação. Acharam o Pires, finalmente.  – O que o senhor quer de mim, bem assustado, gaguejando, com a fala “saccadée” (esse saccadée também é meu), disse o Pires. – Quero saber de quem o senhor ouviu a noticia de que minha sobrinha era bonita? – Não disse tal coisa, o que eu falei é que constava ela ser bonita. – Mas quem lhe contou isso? – Foi o advogado Plácido. – Onde ele mora?  - No Catumbi. – O senhor me acompanhe até à casa do advogado. Dispensado o Luiz José, que correu para casa aliviado, lá foi o major Gouveia com o Pires ao encontro do Plácido. Essa peregrinação começou às 14 horas e já eram 17,  00 h.  Veio a explicação do Plácido: - o que eu disse é que o namoro da sobrinha do major era de tal monta que até já se sabia de um possível rapto. – E quem lhe disse isso? – Foi o capitão Soares. – Onde mora? – em Santa Cruz.  O major, querendo chegar à fonte do boato, levou o Plácido até o Soares na longínqua Santa Cruz. Chegaram às oito da noite.   O Plácido se dirige ao capitão e diz que teve a infelicidade de falar a respeito da sobrinha do major Gouveia e queria que ele confirmasse o que havia sido dito. – Mas eu não me lembro disso. – Ah, agora eu me lembrei, mas o que eu disse foi outra coisa. Disse que havia vaga notícia de um namoro da sobrinha do major com um soldado. Só isso que eu disse.  O major então resolveu falar: - vejo que  a notícia vai diminuindo muito, mas ainda resta o namoro da minha sobrinha com o soldado. Quem foi que lhe disse isso?  - Foi o Desembargador Tadeu. – É meu amigo, tanto melhor, disse o major. -  Senhor major, acho que seu amigo não falou por mal, já que ele sabe que sua sobrinha está pra casar com outra pessoa, disse o capitão. – Vamos averiguar isso, acompanhe-me até à casa dele. – Mas ele mora no Méier. – Não tem importância, vamos de táxi. Na casa do Desembargador, o Soares relembra o caso para o Juiz. -  Sim, agora me lembro, disse que a sobrinha do major piscou o olho para um soldado, o que lamentei, já que ela iria casar com um amigo da família. Mas daí a dizer que havia namoro, realmente não disse. – Mas eu quero saber de quem o senhor ouviu isso, quero chegar ao primeiro culpado desse boato. – Mas foi o senhor mesmo, foi o senhor quem me disse, quando conversávamos na rua do Ouvidor.  – Eu? Não é possível. Ah!, recordo-me. Mas não foi isso que disse. Eu disse que era capaz de castigar minha sobrinha se ela, estando para casar, deitasse os olhos gulosos para algum soldado que passasse.
                        O major voltou para sua casa, já com a ira aplacada e vendo que o boato afinal não fora muito prejudicial. E foi dormir, pensando:  - Quem conta um conto...
                        Os contos do Machado procuravam deixar um ensinamento moral. Nem sempre, mas quase sempre. Eu acrescentaria que não devemos confiar muito em nossa memória, que com o tempo vai esquecendo  detalhes importantes.  E um neurocirurgião moderno até diria mais. Diria que nossas conexões dos neurônios muitas vezes não se  completam bem e acabam provocando comportamentos bem erráticos em muitas pessoas.  
                        Estaria aí a causa de tantas desavenças humanas? Quando não acabam em tragédia, confesso que me divirto muito com tantos desencontros...