O Bilhete

Dia desses acordei daquele jeito, ressacado de sono, sem saber se dormia ou levantava, quando me deparei com um bilhete preso à geladeira por minha namorada:

“Venturoso,

O dia está lilás avermelhado lá fora, cheio de pontinhos brancos sabor ricota. As abelhas de tão felizes dançam imitando o Bolshoi, ao som do Bolero de Ravel com o arrocha de Silvanno Salles. Acho que o resultado dessas zangadas dançantes é o sabor de mel com própolis e um tiquinho de pimenta dedo de moça que elas produziram. Antes, porém, chuviscaram gotas de amoras, espremidas no quintal de muro baixo e lançaram granulados de chocolate ao solo. Vinham da esquerda, vinham da direita e eu não sabia para qual lado corria. O chão ficou forrado de escuro e as formiguinhas trabalhadoras terminaram de enfeitar aquele mosaico. Parecia um bolo formigueiro. Não resisti, provei, e tinha mesmo sabor de bolo formigueiro. Isso me lembra do vestido que me destes, feito com ipês roxos e amarelos, botões de rosas, alças de tulipas, rendinhas de copos-de-leite e o aroma dos jasmins.

Nele, me visto como tua princesa, dona de teu coração impreciso e de tua alcova indecente. Afinal, quando me despes, torno-me tua bacante pia. Tua, toda tua, meu cavaleiro errante! Meu bucaneiro inebriante, contigo sinto-me segura, já que as luas são muitas e os jardins bastantes. Não sinto fome, não sinto sede. Dá-me o calor de tua língua, o sabor de teus beijos, a imensidão do teu colo e faço disso meu banquete. Tão bom quanto tuas receitas secretas que viram os melhores pratos: meus medos em deliciosos assados, meus anseios refogados, com manjericão e hortelã e o que era tristeza, agora brilha na travessa como sobremesa de maçã. Ainda no calor da emoção, dançaremos nós ou os lobos? Ou nós e os lobos? Nós e eles, correndo pelas matas, verdes, escuras, amarelas, inflamadas de sol e rubor. Somos todos seres dessa aventura discrepante. O importante, meu bem (e digo meu no mais estrito sentido de posse. És meu, pagaria por ti o preço que fosse, a monta que desse, com notas graúdas, miúdas e sem direito a troco. Também sou tua, posse, pose, peça e posso) é desfazermo-nos de todo labéu. Nós não o merecemos nem ele a nós! Não estou em presença física agora, em tua frente, apenas por um detalhe, porque é como se eu estivesse. Sinto teu perfume, teus braços entrelaçados aos meus e o calor do teu corpo ao desejar-me bom dia. Tive que me ausentar por instantes, fui atrás de um crocodilo falante que me indicaram ser ótimo nas questões de férias, passeios e no ramo do entretenimento. Mas logo o sol fique tímido, ou cansado e corra para sua casa, logo mais estaremos reunidos: você, eu e a nossa vontade um do outro.

Beijinhos, abraços, bombons e cafunés, da tua Ditosa”

Esfreguei os olhos sem acreditar. Fechei-os e abri-os novamente e tudo se desfez como um encanto. As palavras reformaram-se da seguinte maneira:

“Sau,

Meio dia e você ainda dormindo. Caso vossa senhoria acorde hoje, não se esqueça de pegar meu vestido na lavanderia (aquele florido). Outras tarefas legais: supermercado (lista abaixo), cachorro para passear, levar o lixo para fora e regar as plantas. Tua consulta com o cardiologista será às 15h00. Se der, por favor, prepare o almoço. Não deixe de arrumar a cozinha depois. Como você não se mexia, estou indo comprar os ingressos e tentarei reservar o hotel para o feriado. Vemos-nos à noite.

Beijos, de quem acordou cedo para vida”.

Depois de ler e reler, eu não tive dúvidas: terminei o namoro e voltei a sonhar...

Super Bacana
Enviado por Super Bacana em 25/04/2013
Código do texto: T4258740
Classificação de conteúdo: seguro