Crônica Carioca

Cinco histórias curtas para a hora do almoço.

Há muito tempo, lá para os idos de mil novecentos e fila da carne, existiu um lugar longínquo, às voltas com lutas territoriais e dificuldades com a coleta de lixo. Essa terra passou um mês inteiro tenebroso, acuada com conflitos armados e toques de recolher. O sol saía tímido e o galo não cantava, ficando bem escondidinho. O povo despertava com as primeira rajadas da alvorada e antes que iniciassem a segunda, já estava no ponto de ônibus. Eram tiros o dia inteiro, tudo muito cronometrado, com a preocupação de avisar na escola. A bala não tinha gps, mas quase nunca se perdia. Antes da meia-noite chegar já estavam todos em suas casas, unidos, comentando sobre as atividades do dia e o preço do pão que disparava. Naquele tempo de bangue-bangue não havia a expressão bala perdida, não se queimavam ônibus e a “diversão”da família era sair aos domingos, entre quatro e seis horas da tarde, para ver as baixas da guerra. Estranho, mas não existia sensação de insegurança e o que aborrecia era a precariedade da limpeza pública e a coleta do lixo.

Logo naquele verão, o mais quente de décadas, a energia elétrica cismou em falhar e pregar sustos em todos. Nada de ventiladores, nem ar condicionados ou televisão. O bom radinho de pilha e o leque de papel sustentavam a vontade por novela e frio. Numa semana de novembro, a geladeira virou bibelô, a bomba parou e deixou a caixa d'água vazia. Água agora somente na cisterna do pátio, com baldes pesados e pelas escadas escuras. Só as crianças se divertiram, juntando graninha fazendo frete e também nas horas dos banhos sem pudor no pátio arejado. Um cano jorrava água e algumas crianças ficavam sob ele, com a ideia mais próxima de cachoeira que já tiveram. Outras enchiam os baldes e derramavam sem medo ou timidez aquela água gelada e inocente. Os adultos olhavam de longe, com inveja, e clamavam pelo fim do sofrimento. Unicamente os adultos. As crianças agradeciam e aproveitavam o melhor verão que já tiveram.

Início das férias, o destino era certo para aquele adolescente filho de pais separados. Viagem tão aguardada – no fundo, mais pela sensação de liberdade que tinha do que saudade do pai. Saindo aquela hora (quase cinco da tarde), pensou: “às seis rodoviária, seis e quinze comprava as passagens e às quinze para as sete já estaria na casa do tio, comendo o delicioso bolo que a tia fazia”. Ele, o primo e o amigo encararam aquela extensa avenida, tranquila por ser contra fluxo. O que não estava nos planos era a chuva que se formava e poderia cair a qualquer momento. Meio do caminho, dito e feito: as primeiras gotas vieram tímidas, sem vontade, somente para refrescar. Depois foram ganhando corpo, criando vontade e o verbete tempestade mostrou-se. Em pouco tempo a avenida estava alagada, chegando água na escadaria do ônibus parado, que transformou-se num cardume, ao lado de seus pares. Os passageiros viraram expectadores do fenômeno estival. Uma passageira com dor de barriga foi ao fundo do ônibus e o restante correu para frente. O motorista do caminhão ao lado emprestou um tubo de desodorante e piadas foram feitas. Jogou-se porrinha, jogo da velha, reclamou-se da cidade e do verão. A chuva passou, a água baixou e meia-noite estavam os três comendo o bolo da tia. A passagem ficaria para o próximo dia. Mas só se não chovesse.

A jornada era de estagiário, sem descanso a semana toda. Era trem lotado na ida e na volta. Às vezes cansava de ir em pé, então, ou pegava o parador mais vazio ou voltava até a Central e lutava por uma vaga no direto. Era o estrondo da boiada, mas já era craque em assentar-se no comboio. Tudo era esquecido às sextas-feiras, quando ia no último vagão, regado à samba, sueca e cerveja gelada. No começo não sabia jogar muito bem, não gostava de samba e achava cerveja amarga. Mas depois foi pegando gosto e ficando expert. E tudo foi se resolvendo, a amargura da semana passando, os amigos surgindo e as estações ficavam para trás cada vez mais rápido.

Com a vida realmente começando, tinha pouco dinheiro e muito espírito de aventura. Para que gastar tanto em uma passagem do Rio de Janeiro à Paraty se poderia ir de coletivos, trocando-os pelo caminho e economizando mais da metade? Chamou amigos com o mesmo pensamento e foram na aventura. Nove horas depois perceberam que já era tarde e teriam que gastar o economizado pousando por lá. Mas valeu a pena. Viram o céu lindo de Paraty, suas calçadas de pedras disformes, a procissão... Viram o paraíso. E fariam tudo de novo, da mesma forma, com as mesmas pessoas.

A vida é isso: adaptação, aventura, inesperado, amigos e algumas histórias para contar.

Super Bacana
Enviado por Super Bacana em 26/04/2013
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