Faltam professores, e agora?

“No programa de hoje vamos conversar com o Sr. Samuel Almeida, funcionário responsável pelo recrutamento de professores na nossa cidade. Boa noite, Samuel”. ‘Boa noite, Seu Bruno’. “Vou começar com uma pergunta básica: Como vocês recrutam os professores para as escolas estaduais da cidade?”. ‘Bem, o ônibus do recrutamento circula pela manhã e à tarde, anunciando as contratações imediatas: normalmente, professores de todas as áreas, para trabalhar na maioria das escolas, recebendo dois salários mínimos mensais por trinta aulas semanais’. “E é fácil encher o ônibus?”. ‘Não. Às vezes circulamos durante meses sem encontrar professores de Biologia, Física, Química e Matemática. De História, Geografia, Português e Inglês, geralmente com dois meses de procura a gente encontra uns três ou quatro para cada disciplina, e o estado organiza um rodízio entre eles, em duas ou três escolas, com uma carga horária maior para cada um, resolvendo o problema – pelo menos até eles desistirem da sala de aula, o que é só uma questão de tempo’. “Mas por que vocês não anunciam as contratações nos jornais locais ou nas rádios?”. ‘Porque ninguém aparece. A gente precisa circular pela cidade de ônibus, que é pago pelos pais dos alunos, e ainda oferecer um lanche do Subway aos candidatos lá dentro (também pago pelos pais), para aparecer alguém’. “E quem pode se candidatar?”. ‘Qualquer pessoa’. “Qualquer um? Não precisa ser formado?”. ‘Formado em quê?’. “Ora, em algum curso de licenciatura”. ‘Licenciatura? Essa foi boa, Seu Bruno, dá até vontade de rir’. “Mas quem leciona?!”. “Só para o senhor ter uma ideia: ontem mesmo, quando desembarcamos um lote de três candidatos no prédio da Superintendência de Ensino, fiquei sabendo que o Januário, açougueiro, com Ensino Médio incompleto, foi contratado para dar aulas de Biologia à noite. A Jandira, minha cunhada, que nem concluiu o Técnico em Contabilidade, virou professora de Matemática da noite para o dia, com vinte aulas semanais. O Epaminondas, casado com uma prima minha, só porque disse adorar ler gibis, foi contratado como professor de Português, sem nunca ter concluído o Ensino Fundamental. Para dar aulas de História, qualquer um serve: os entrevistadores nem querem saber se o candidato gosta de ler, se tem algum conhecimento histórico, nada; vão logo perguntando: Quer dar aula de História? De Geografia, a mesma coisa. Meu primo Juca, que foi vendedor de sapato e conhece várias regiões do Brasil, quando resolveu largar o comércio, foi contratado para dar aulas de Geografia no Ensino Médio. E olha que ele nem concluiu o Ensino Fundamental’. “Mas vocês não encontram ninguém com curso superior?”. ‘De jeito nenhum. Foi-se o tempo que engenheiro dava aulas de Matemática e advogado de História. Acabou. E eu conheço um gari semi-analfabeto que recebeu uma proposta da Superintendência de Ensino para ganhar meio salário a mais para lecionar Física numa dessas escolas de periferia e recusou na hora. Ele sabia o perigo que era aquilo... É que o tio dele, um ex-presidiário, quando concluiu o Ensino Fundamental no presídio, foi contratado para dar aulas de Química nessa mesma escola e acabou sendo assassinado por um aluno’. “E Filosofia? Quem dá aula de Filosofia?”. ‘Filosofia? Acabou Filosofia. Não existe isso mais nas escolas, nem Sociologia, nem Redação e nem Literatura’. “Mas como é possível?”. ‘Não entendi’. “Os alunos não têm Literatura?”. ‘Seu Bruno, 80% dos professores são semi-analfabetos. Eles não conhecem nada de Literatura, nem o mínimo necessário para enrolar os alunos, como fazem nas outras disciplinas. Literatura é coisa de gente rica, de professor de escola particular da capital, e olhe lá! (pois na capital, os colégios que não pagam salários milionários aos professores ficam a ver navios)’. “E professor de Inglês?”. ‘Qualquer pessoa que tenha passado uma temporada em um país de língua inglesa (que seja uma semana) está apta a lecionar inglês. A minha tia, por exemplo, que só conseguiu concluir na vida um curso de corte e costura por correspondência, lavou pratos durante dois meses no Canadá e quando voltou foi contratada imediatamente para dar trinta aulas semanais de inglês em duas escolas estaduais da cidade. Pobrezinha, ela dizia, cheia de orgulho, que era professora de ingrês (nem português ela sabia). Numa noite, quando ela tentava explicar uma matéria qualquer, os alunos faziam tanta bagunça, gritavam tanto, que ela resolveu fingir um desmaio e desabou no chão. Lá do fundo, um aluno gritou: Enfia o dedo no cu dela que ela acorda! Depois disso ela nunca mais entrou numa sala de aula, coitada’. “Mas por que as autoridades públicas não tomam providências para resolver essa situação?”. ‘Resolver para quê? O governo não quer resolver nada na Educação. Para ele, filho de rico é que tem que estudar em escola boa, para virar engenheiro, advogado, médico, administrador, contador, executivo, político – ou seja: uma minoria. Pobre tem é que aceitar sem reclamar a vida que leva, trabalhar, trabalhar, trabalhar, até morrer, mantendo as coisas do jeito que estão’. “Não dá para acreditar”. ‘Mas é a verdade, Seu Bruno. Pergunte aos meus colegas do recrutamento. Só um ou outro pai consegue juntar dinheiro suficiente para mandar o filho para a capital, onde ainda existem algumas (poucas) escolas boas, particulares, com mensalidades que giram em torno de três mil reais. Só ali é possível encontrar professor formado em faculdade, às vezes até com mestrado, recebendo dez, doze mil reais por mês; mas isso é uma raridade. Nas escolas públicas de nível básico, a situação é a que eu acabo de descrever para o senhor’. “Meu Deus... Como é que pode?”. (Bruno olha para o seu notebook e levanta as sobrancelhas): “Vejo que acabo de receber um e-mail da socialite Dona Jaciara Menezes Torres e Albuquerque, que está em sua mansão acompanhando a entrevista. Ela diz o seguinte: Meu caro Bruno, gostaria de aproveitar este espaço para parabenizar a Superintendência de Ensino e o estado (sou amiga pessoal do governador) pelo excelente trabalho realizado no recrutamento de professores para as escolas públicas estaduais, em especial para as da nossa querida cidade. Fico muito feliz em perceber que aqui, apesar de algumas vozes discordantes, ainda vigora, para o bem da harmonia social, a filosofia do ‘Cada um no seu lugar com o que merece’. Um abraço a todos os ouvintes.”

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 26/04/2013
Código do texto: T4261385
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