"Tinguera" - Um homem simples.

Conheci o Sr. Justino no final do século passado. Mais precisamente nos primeiros anos da década de 1990.
Sempre que passava pelo centro da cidade, numa rua qualquer – dependendo da hora, lá estava ele caminhando amparado por uma muleta de madeira, já bem surrada, e uma bengala de metal. Corpo franzino, rosto sofrido, chapéu de camurça preto encardido, paletó, também preto, um pouco carcomido e a calça igualmente na cor do paletó, sendo que uma das pernas era alinhavada na altura da cintura, o que prenunciava a ausência da perna esquerda.
Num dos ombros carregava sua marca registrada, a inseparável viola, acondicionada e bem protegida num estojo próprio e preto. Todo santo dia ele saia do seu bairro, o Campo Grande, e fazia seu trajeto habitual até a Rua Alfredo Schurig, no Centro. Seguia só e sempre ouvindo zombarias. Chegando próximo às grandes lojas e magazines, ele dava uma paradinha para descansar. Sentava numa soleira qualquer e lançava mão da sua violinha. E ali, enquanto descansava o velho corpo, dedilhava suas notas musicais num misto de doçura e rudeza.
Mas, a história deste senhor pitoresco, tipo quase folclórico, vem de mais longe. Diziam os mais antigos que, ainda jovem, num acidente de trem, perdeu uma das pernas, a esquerda. Daí em diante sempre viveu sozinho, não tinha família e nem parentes próximos. Morava num pequeno cômodo e se virava com uma mixaria que recebia da aposentadoria por invalidez. Nos apertos, era auxiliado pelos vizinhos.
Nosso querido Justino tinha um apelido, o qual abominava: “Tinguera”. Queria ver ele bravo? Era só passar por ele e gritar: “Tinguera”!
Só eu não sabia deste detalhe. Sempre que o via, sentado nalgum cantinho acarinhando aquela velha viola, ficava a distância, por breves momentos, admirando-o. Pelas circunstâncias eu imaginava suas dificuldades; pela sua simplicidade eu tentava adivinhar os seus sentimentos.
Naqueles tempos já estávamos na modernidade. A cidade com seu progresso pujante deu enorme salto. A vida já não passava devagar. O tempo ficou veloz. As pessoas já não andavam, corriam - mal se viam, e aquele estereótipo de homem que mais parecia herói de estória em quadrinhos, feito coisa do passado, era parte do cenário presente. Tudo isto me fazia enxergar nele um cidadão duma cidade interiorana, um tipo muxuango.
Certo dia, de tardezinha, eu caminhava rumo ao banco e o avistei seguindo à minha frente. Apertei os passos e quando emparelhei a ele, singelamente o cumprimentei:
- Olá Tinguera, tudo bem?
Continuei meu caminho quando, de repente, o homem começou a me xingar e a tentar me alcançar com a bengala em riste. Vinha rápido e soltando impropérios num sotaque forte de caboclo das antigas que, aliás, lhe era peculiar.
Eu, sem entender o real motivo da sua fúria, cheguei rápido à porta de vidro do banco e adentrei.
Preocupei-me com a possibilidade dele avançar rápido sobre a porta, estilhaçando-a com a sua bengala de aço. Que susto!
Todos no interior do banco me olhavam sem nada entender e... nem eu.
Jamais imaginei que ele detestasse ser chamado pelo apelido. Até então, eu não sabia seu verdadeiro nome.
A partir deste episódio procurei informações sobre ele e descobri seu nome: Sr. Justino. Soube o porquê de sua raiva, culpa da criançada e dos marmanjos que o insultavam. Cheguei a ouvir uma famosa frase que ele falava nos momentos de revolta: “Eu te pico de bala”, que eu traduzia como: “Eu te furo de bala” ou “Eu te encho de tiros”.
Tempos depois, por motivos profissionais, deixei de ir ao centro da cidade diariamente, só ia, vez ou outra, quinzenalmente e, por isto, não o via mais com a frequência de antes.
Anos atrás, já no século presente, numa certa manhã fui com um grupo de alunos fazer uma visita ao Asilo “Amor e Caridade” e, para minha surpresa, reconheci em meio aos idosos ali internados, o Sr. Justino, já bem velhinho. Agora mais ranzinza pelas cicatrizes que o tempo lhe deixou, pelos dissabores que a vida lhe reservou. Ele estava num cantinho, cabisbaixo e soturno. Pensei em cumprimentá-lo, mas hesitei. Preferi não arriscar.
Naquela ambiente de pessoas solitárias, com olhares de quem já chorou as derradeiras lágrimas, ali estava o meu amigo, o único que não se sentia só, pois, tinha sua viola para acalentar e espantar a inevitável solidão.
Recentemente soube do seu passamento. Foi para o andar de cima.
Foi tocando sua viola, fiel companheira duma vida inteira.
Tocando nos dias ensolarados, nas tardes chuvosas e nas noites enluaradas.
Segue, meu querido Justino, segue seu caminho de Luz!
Vai e prepara a trilha sonora da nossa chegada ao Reino dos Céus.