VANZOLINI

A música se eterniza quando o dom de quem a compôs é perfeito. Torna-se atemporal, atravessa gerações na memória e na boca do povo que a consagrou. A música não envelhece; tem idade, mas não se limita a uma só época quando retrata um cotidiano que se mostra atual a qualquer tempo.

Diz-se que o artista morre e a obra dele fica. E fica mesmo, como tudo que é bom não perde o brilho; reluz à longa distância, move e remove paixões, vive e revive lembranças de um passado antigo ou recente. E com ele traz luz e cor, perfume, sabor de beijo, sensações de toque, carícias que ainda vêm à pele, o som de memoráveis palavras sussurrantes num instante de dança, mão na mão, olhar perdido entre o real e o devaneio e aquela sensação suavemente tátil como a leveza da brisa. A música marca um momento, registra uma “melodia imortal”, faz um retrato sonoro de algo ou de alguém. Ela é única na sua linguagem universal a chegar a toda a gente. É a melodia da sensibilidade em harmoniosa vibração das sete notas. A música dá voz ao poema, que fala quando a poesia canta. É esta junção melodia e poesia que reúne dois num só, ou um só em dupla criação. Música e poema, poeta e músico.

Penso tudo isso ao ouvir Vanzolini. Mas a partir de hoje isto é uma metonímia. Ouvi-lo é apreciar-lhe a obra que, de outras gerações, chegou à minha com a mesma identificação e atualidade. Um poeta letrista, que das canções foi cronista, numa ronda paulistana diuturna. Deu a “Volta por cima” em todas as fases por que passou a música popular brasileira. Notabilizou o samba paulistano; deu-lhe forma e conteúdo próprios, fez de Ronda o “hino das noites de São Paulo”, poetizando-a de forma amorosamente lírica, passional e fatalista. E a crônica musicalmente versificada pode ser lida em prosa, contextualizando esta:

De noite eu rondo a cidade, a ti procurar sem encontrar. No meio de olhares espio por todos os bares você não está. Volto pra casa abatida, desencantada da vida. O sonho a alegria me dá nele você está. Ah se eu tivesse quem bem me quisesse este alguém me diria: desiste, esta busca é inútil, eu não desistia. Porém, com perfeita paciência volto a te buscar, hei de encontrar bebendo com outras mulheres, rolando um dadinho, jogando bilhar. E neste dia, então, vai dar na primeira edição: Cena de sangue num bar da Avenida São João.”

Ouvir Paulo Vanzolini é ouvir São Paulo cantando um murmúrio noturno na voz suave de Márcia, sua intérprete original e definitiva. A mesma de “Eu e a brisa”, de Johnny Alf, ambas as gravações definidoras de um tempo antes do meu e que meu pai hoje o reviveu fazendo-me ouvi-la, rondando-me com o olhar. Então, pai; esta é pra você.
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*Escrevi esta crônica logo após o que disse hoje o meu pai assistindo ao Bom dia Brasil: "Quantos sem expressão recebem da Globo uma homenagem póstuma a ocupar quase todo o telejornal. Um compositor desse porte quase sequer foi lembrado".
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RONDA > Clique e ouça
http://www.youtube.com/watch?v=0zQZM-eomiI
Volta Por cima.
http://www.youtube.com/watch?v=vUPxjKeRwH0

 
LordHermilioWerther
Enviado por LordHermilioWerther em 29/04/2013
Reeditado em 29/04/2013
Código do texto: T4265506
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