O cínico

O cínico parece já não ter mais para onde subir na vida. É dono de um patrimônio imenso, que vai de fazendas a helicópteros, e goza de uma renda mensal que inveja até deputados e senadores, mesmo depois do aumento de 60% em seus salários. Grande parte dessa riqueza ele deve ao seu cinismo: uma falta de vergonha, uma desfaçatez, uma impudência cevadas desde o berço, onde, bem pequeno, ele já sabia fingir o choro para conseguir o colo da mãe, esconder o pirulito embaixo do colchão para ganhar outro melhor, acusar o amiguinho de uma travessura que ele próprio cometera: coisas de criança, talvez, mas que no cínico foram se multiplicando de tal forma que, na juventude, deram origem a uma verdadeira máquina de vencer: um estrategista de mão cheia, com um único propósito na vida: estar na crista da onda, no ápice – o que, para ele, significava ter muito dinheiro, um casamento tradicional, um cargo que lhe permitisse exercer poder sobre os outros, filhos brilhantes.

No quesito ‘filhos brilhantes’, não importa se os meninos são apenas razoavelmente bem sucedidos em suas profissões. Ao falar deles, o cínico pinta um quadro fantasioso sobre seus dotes e vitórias, transformando-os em verdadeiros super-heróis. Quem sofre mesmo são as pessoas obrigadas a ouvi-lo falar dos garotos: os relatos são longos e cheios de detalhes sobre suas façanhas profissionais, pessoais e até mesmo sexuais, comparando-os com outras pessoas, de forma a diminuí-las, e, às vezes, chegando ao ponto de citar nomes de garotas que lhes permitiram provar sua masculinidade viril, colocando-as, também, é claro, em uma posição de inferioridade.

É incrível a facilidade com que o cínico te critica pelas costas e logo em seguida diz exatamente o contrário na sua frente, te olhando nos olhos, como se aquilo realmente é o que ele pensa de você. É o jogo do cínico. Ele é um bom estrategista, sabe transformar as pessoas em joguetes, colocar umas contra as outras, envenenar relações, tudo para se manter no poder, para atrair olhares de inveja e admiração. E ele sabe se cercar de bons bajuladores, a maioria tão cínica quanto ele, pois nas suas costas, muitos desses baba-sacos criticam-no, ironizam-no, riem dos seus defeitos, do seu orgulho desmedido, da sua conversa enfadonha e cansativa, mas, na sua frente, tratam-no com respeito, concordando com suas opiniões e participando das suas intrigas.

Para o cínico, os fins justificam os meios. Comumente ele lança mão de suas relações pessoais com gente importante, construídas também na base do cinismo e do fingimento, para conquistar ainda mais prestígio e poder, quase sempre usurpando direitos, mentindo, enganando.

Normalmente seu cinismo vem acompanhado de maldade. No cínico, qualquer desavença pessoal aciona seu desejo de vingança implacável, e ele não sossega a alma enquanto não prejudicar seu desafeto. Se não for bem sucedido, para aplacar sua ira, ele investiga a vida da pessoa, só para se certificar de que a situação financeira ou patrimonial dela é inferior à sua ou à de seus filhos – já que, para ele, o que determina o valor de um homem são seus bens materiais. Saber que o outro tem um salário inferior ou um patrimônio bem menor que o seu alivia o tormento de sua alma.

E ele geralmente vence, para os outros, para si, para a família. Ele é muito competente, perspicaz, inteligente, suas jogadas são rápidas, bem pensadas, e ele é bem recompensado por isso.

Mas como afirmou certa vez o grande escritor Oscar Wilde: o cínico pode conhecer muito bem o preço de todas as coisas. Mas ele não conhece o seu valor.

Essa é a diferença.

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 05/05/2013
Código do texto: T4275481
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