Raízes

A importancia de minhas raízes ficou mais nítida, quando ao acordar depois de vinte dias em estado de coma e morando em São Paulo, sonhei com Porto Alegre como forma de sintetizar o que vivi.

Do período em que estive desacordada não guardo registro, muito menos lembro visões de Nossa Senhora, ou se embarquei em um túnel do tempo, embora seja certo que tenha estado entre dois “mundos”. Do sonho, recordo que estava num trem que viajava em alta velocidade sobre o Guaíba, numa noite estrelada. Ele se dirigia à cidade que e, apavorada, esperei por um naufrágio. Com rapidez, aproximou-se da margem e, em pânico, pensei: “vamos bater”, mas na altura da Usina do Gasômetro, diminuiu a velocidade, engatou num trilho e seguimos na direção do centro da cidade.

Eu via passar os edifícios, iluminados dentro da noite, sem que meu trem colidisse com eles. Prédios antigos desde a Usina do Gasômetro, passando pela zona militar, a Igreja das Dores com sua escadaria, a Casa de Cultura Mario Quintana, a praça da Alfândega e suas árvores centenárias, prédios imponentes como o Museu de Arte do Rio Grande do Sul, o do antigo Correio e o do Santander Cultural. Deslizando ele me permitia distinguir pessoas ainda trabalhando.

Cada vez mais lento, chegou à praça Montevidéu, local da Prefeitura Antiga e seu chafariz, tendo ao lado, o prédio, a meu ver, mais interessante de todos, que é o do Mercado Público. A sua frente, a praça Quinze de Novembro e o Chalé, local aonde muitas vezes cheguei de bonde, por ser o ponto final de várias linhas.

Eles circundavam a praça, recolhendo e deixando passageiros no terminal, onde hoje somente há casas de comércio. Por se tratar de sonho, não havia ambulantes e suas feias barraquinhas. Naquela altura, meu trem fez a volta e seguiu pela avenida Borges de Medeiros como se esta fosse plana, onde fez mais uma façanha: subiu a escadaria do viaduto em direção à rua Duque de Caxias, virando à direita.

Até então os prédios estavam em parte ou totalmente iluminados, mas ao seguir ele seu itinerário em direção à praça da Matriz, começou a ficar escuro, a não ser por luzes que identifiquei como sendo do Palácio Piratini e do Teatro São Pedro... Não pude ver a Assembléia Legislativa, o Tribunal de Justiça, mas foi possível admirar nossa Catedral com sua cúpula, e o belo Solar dos Câmara.

De toda esta experiência posso perguntar: foi uma experiência regeneradora? Não chego a tanto, mas transformadora, sim e sempre para melhor, pelo menos do jeito que eu vejo o meu estar no mundo hoje em dia. E considero importante, principalmente por ser sozinha, saber que pessoas desconhecidas haviam prestado solidariedade.

O ocorrido tão marcante que só pode ser acessado em minha memória em golfadas. Como um tabu cercado de emoções, a memória destes fatos vem recheada de flashbacks, ora tristes e não porque eu os sinta assim, mas porque graves, ora divertidos pelo ridículo de situações, sobretudo quando contado pelas maravilhosas mulheres que acudiram em meu socorro.

Relembrar estes fatos faz-me entender melhor o sonho, onde as imagens do um trem fantástico, deslizando sobre as águas, que associadas ao que vivi, creio significarem uma travessia em segurança num período de grande perigo para minha integridade. O “engatar“ nos trilhos interpreto como voltar à vida normal, pois ele encontra o caminho, escolhendo o que há de melhor e mais bonito para me mostrar, ao que assisto maravilhada. O Guaíba - rio, lago, estuário - parece-me um símbolo da minha feminilidade, que poderia tragar o meu “trem” - a minha mobilidade - ameaçando o prosseguimento da vida. E pode haver algo mais importante que isto?

Marluiza
Enviado por Marluiza em 27/03/2007
Reeditado em 28/03/2007
Código do texto: T427707