Escritor de internet

Escritor de internet





- Senhora, não tenho culpa que o livro não tem números nas páginas. A senhora por favor... Olhe, noutra fase da minha vida eu lhe diria exatamente o que fazer com seu dinheiro. Por que todo esse estardalhaço? Sra., acorda, até o Google escreveu um livro, sabia? Ah não, pois é... E quer mais? Não faz muito tempo alguém teve a brilhante iniciativa de lançar um troço chamado National Novel Writing Month. Milhares de pessoas aceitam o desafio de escrever um livro de 50.000 palavras em 30 dias. A sra. tem idéia de quantos feitos similares pululam todos os dias na web?! Qual...E a sra. vem reclamar que meu livro não tem números nas páginas?! Ora, encare isso como uma inovação. E mais, agradeça por acessar a internet, na Coréia do Norte ninguém acessa, só os home...lógico. Parece piada, mas é sério. É o único país do mundo onde isso acontece. E quer saber mais, aparelhos de TV e Rádio são vendidos pré-ajustados, para transmitirem só estações controladas pelo governo. Ai, ai, (suspiros), escritor é o serviço mais mal pago do mundo, a gente fica de plantão 26 horas por dia. Vinte e quatro para a senhora, escritor tem duas a mais... Bom, e daí que eu não craseio todos os “as”? Palavra que se eu soubesse, crasearia...Ah, puxa, agora baixou o nível... Igualmente pra senhora. Culpa da internet, oferecem de tudo. E depois, como uma espécie de milagre, todo, todo, todo mundo é escritor, arre... e nóis precisa recebê, senão nóis num veve. Deixa eu explicar uma coisa – concordo inteiramente que R$ 30 é uma exorbitância para um livro de 60 páginas. Mas não sou eu quem coloca o preço no livro. É o tal site, entendeu? Por mim este livro estaria à disposição por cincão. É muita oferta, muita oferta, ahá, por isso meus livros não tem números nas páginas. Já disse, trata-se de um diferencial. A sra. vai poder dizer para as suas amigas: aquele livro do Fulano, que por sinal é uma porcaria, sequer vem com numeração. Ah, então não é tão ruim assim, se marcou as páginas... Ué, pode até usar umas fitinhas coloridas entre uma página e outra... Não sei o que o Camus faria na era digital. O cara escreveu o que, 6, 7 livros, sei lá, ganhou o Nobel...Hoje a gente escreve de baciada. Bom, se a sra. mandar retirar, tenho outros livros, todos com números nas páginas. Alguns até tem fotografias. Não, não são imagens digitalizadas porque estão impressas. Mas a sra. mesma pode digitalizar... Cruzes, que conversa... Como? Por cincão a peça a sra. leva todos os livros que estão em casa. Cesta básica? Bom, podemos converter para cesta básica, deixa eu ver como anda a cesta atual - um pé de couve, meio litro de leite e dois tomates. Tá feito... Sra., presta atenção, por R$ 27,90 é possível comprar o “1822”, isso sim é um livro, com “L” maiúsculo, por que a sra. foi comprar justo o meu? Ah, por engano, bem, nações já derramaram sangue por engano. Não posso devolver o dinheiro porque não recebi. Os cara só me pagam quando a conta chegar em 100 reais e como eu ganho cincão em cada venda e como o único livro vendido até agora foi por engano, a lógica (coisa que o escritor não possui) me diz que um dia poderei ressarci-la. Bom, se a gente ficar mais 5 minutos nessa conversa vou pedir financiamento para a próxima obra... Como, o que vai fazer com o livro? Não vai lê-lo, só porque não tem número na página? E o meu sonho, como fica? Ops, acabo de ter uma idéia... Esse fato ocorre em todas as páginas, ou só em algumas? Bem, ainda assim não me parece que isso seja exatamente um impedimento para a leitura. A sra. tem uma régua? Então, a cada página lida a sra. arranca um pedacinho... Ufa, então dê o livro de presente, criatura, doe para uma pessoa que esteja carente desse tipo de artefato, por enquanto não é um produto controlado, como certos medicamentos e, hã, armamentos. Sim, armamentos são controlados, mas proliferam, sabe-se lá como, mais do que livros, pelo jeito...Ou, quer saber, pode dar pra mim, pelo menos aproveito a chance de vê-lo impresso... Não, o meu sonho não é vê-lo impresso, é vê-lo lido, sei lá como explicar, é um lance meio metafísico. Quando disse sonho me expressei mal, digamos então o propósito do meu trabalho como escritor. Em poucas palavras? Vou resumir: sabe o que dizem sobre o Grand Canyon? Vá ao Grand Canyon, é uma das poucas coisas na vida que, quando você vê, não fica desapontado. Olha, com todo o respeito, queria que eu a chamasse de que? Não estou entendendo, gripe? Tão forte assim? Ok, hummm, qual a sua idade? Vinte e cinco? Uau, pode me mandar umas fotos, digitalizadas? Alô? Ah, e deixa eu te perguntar uma coisa, qual o seu signo? Alô?


(Imagem: Frederic Remington, 1861-1909)


 
Bernard Gontier
Enviado por Bernard Gontier em 10/05/2013
Reeditado em 24/05/2021
Código do texto: T4282845
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