Down

Um dia desses, estavam alguns alunos de um curso relacionado à supervisão escolar fazendo uma pesquisa de campo em diversas escolas infantis das redondezas. É um pouco difícil acostumar-se com o termo 'escola infantil' visto que desde sempre elas foram chamadas de creches. Porém vou citá-las pelo termo correto.

Em uma dessas escolas, estudava a menina Clarinha.

Clarinha é uma criança que corre, brinca, desenha e conversa quase como todas as outras, com exceção de um fato que a torna muito especial. Ela é portadora da Síndrome de Down. O trabalho que a supervisora estava fazendo na escola naquela tarde era justamente o de avaliação de métodos de ensino que eram utilizados quando se trata de ensinar crianças que portam necessidades especiais.

A tarde foi passando, e a aula foi se construindo em meio à pequenas tentativas de ensino, e também ao esforço do professor em inventar as mais diferentes brincadeiras para educar os pequenos, que em algum tempo se tornarão nossos médicos, advogados e dentistas.

Porém, quanto mais o tempo avançava, mais as tentativas de incluir Clarinha nas brincadeiras iam se tornando frustrantes. Nas brincadeiras de roda, ela era a última a sentar-se quando a música acabava. As respostas dela às perguntas mais simples se tornavam um emaranhado de sílabas muitas vezes de difícil compreensão. Os desenhos que ela fazia geralmente não passavam de riscos disformes, longe de se tornarem alguma obra interessante, mesmo para uma criança de poucos anos de idade. Enquanto isso seus coleguinhas riam... ah como eles riam dela.

Quem já teve a oportunidade ímpar de participar do processo de aprendizagem de pessoas com Down, sabe que não são poucas vezes as quais elas se isolam, e se entristecem quando percebem que estão se tornando o motivo de piadas entre as outras pessoas ao seu redor. E com Clarinha não era diferente. Apesar do visível esforço da pequena aluna, não eram poucas as vezes que a tentativa de criar frases complexas (para uma menina da idade dela) se tornava um teatro de comédias em face dos colegas que não entendem o que está se passando e apenas vêem uma criança como eles, porém, por algum motivo que eles desconhecem, não conseguir fazer as mesmas coisas, ou falar as mesmas frases.

Em uma tentativa desesperada, o professor titular naquele dia resolveu contar uma história. A história do sol.

Colocou todos sentados em uma roda, e começou a falar-lhes sobre os benefícios do sol. Falou também sobre o quão bem o sol faz para os animais, ajudando a mantê-los aquecidos, ajudando a secar os pêlos que amanheciam molhados, graças ao orvalho, ou o quanto era útil para as plantas, ajudando as folhinhas a respirar, e até mesmo da importância que o sol tinha diretamente para as pessoas desse mundo.

Após pausadas explicações, várias folhas de ofício foram pegas e distribuídas igualmente entre as crianças e muitos lápis de cor foram jogados no meio da roda para cada criança pegar um e desenhar o seu sol.

Vários minutos se passaram quando praticamente todas as crianças já tinham desenhado seus sóis amarelos, dos mais diversos tamanhos, com olhos, boca, inclusive alguns com bracinhos e perninhas. Todas menos uma...

Clarinha ainda estava olhando para aquela folha de papel quando seus coleguinhas já demonstravam sinais de impaciência, por ela nem ter começado ainda.

Foi então que ela pegou um lápis com a cor preta, e começou a socar a ponta dele com força naquela folha de papel. Quanto mais força ela fazia, maior era o silêncio que começava a pairar pela sala. Então, já sem idéias, o professor exausto, andou até a supervisora, colocou-lhe a mão no ombro e disse:

- Tá vendo como é difícil trabalhar com ela? Não consigo fazer ela participar, e quando ela participa ela faz coisas completamente sem sentido. Não sei o que fazer...

Nesse momento, a supervisora andou até Clarinha, agachou-se ao lado dela enquanto envolvia-a nos braços. Então, apontou para a folha e disse:

- Sol, Clarinha?

Então um dos mais belos sorrisos existentes na face da terra se abriu no rosto daquela criança, que apontou pra janela e disse:

- uuuuVÁÁÁÁÁÁÁÁÁ!

Então um arrepio percorreu toda a extensão do corpo da supervisora, ao desviar seu olhar para a janela e perceber que estava chovendo.

O ensino ultimamente vem se caracterizando pelas greves que vem, dia após dia, causando o temor daqueles que precisam dos educadores. A excelência profissional hoje passa pela barreira do baixo salário, sendo que muitas vezes ele é tido como a causa da falta de cursos de reciclagem, e aperfeiçoamento.

Quando citei essa história em uma conversa informal com alguns amigos, vários citaram exatamente essa situação: Com o salário do jeito que está, fica complicado que os professores, além de cuidar de suas famílias, ainda complementem regularmente seus currículos com especializações para tentar lidar com diversos casos dentro do ensino.

Porém, a dúvida é se realmente isso é um empecilho para que o ensino seja guiado por muitos profissionais despreparados. Quando a rotina necessita de alguém com habilidades para lidar com aquelas situações, isso é negado aos alunos, trazendo muitas vezes um professor desmotivado e chateado pelos problemas extra-classe.

Acredito que na maioria das vezes as pessoas se escondem atrás de um rótulo de que seus alunos são 'Crianças Especiais', e que precisam de uma aprendizagem diferenciada, sendo que a sua sala de aula não é adequada, quando na verdade é o ensino, e os próprios professores é que precisam dessa modificação.

Até quando o mundo irá pensar que crianças com necessidades especiais, e não somente o Down, citado aqui, mas com as mais diversas necessidades, não tem uma percepção apurada do mundo à sua volta, dando-lhes tarefas inadequadas, ou atividades pífias, provando que a percepção falta para aquele que está ensinando?

O mundo precisa mudar. O sistema de educação é um processo que muito lentamente sofre mudanças. Muitas vezes essas mudanças são cruciais para o bom desempenho do processo de educação, mas com tecnologias ultrapassadas e métodos de ensino que não mais atraem a atenção dos alunos hoje em dia. O ensino precisa ser feito com base nas atividades do cotidiano. É preciso ter sensibilidade para entender que muitas vezes o que se está ensinando não faz o menor sentido naquele contexto atual. E mesmo assim ainda se insiste nesse processo.

E por fim, a grande dúvida que fica. Por que os professores insistem em ensinar sobre o sol, quando olhamos pra fora, e vemos apenas a chuva?!

Álisson Zimermann
Enviado por Álisson Zimermann em 10/05/2013
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