O grito

No ápice da noite dois olhos não se fecham, uma mente não sossega e vários pensamentos sujam a atmosfera do quarto, deixando o ar pesado e sinistro. Milhares de reflexões em uma só. Imagens surgem no escuro, imaginação fértil e fétida. Tenta em vão ter lembranças agradáveis, mas a memória é cruel assim como a vida é. O passado muda de acordo com o presente e o futuro está tão longe e tão ausente que é esperado impacientemente e sofregamente. Nunca o futuro havia sido tão duvidoso, nunca a noite estava sendo tão longa.

Longa, longa, longa, repetidos pensamentos, nunca repetidas conclusões, jamais uma certeza, a não ser a certeza de que a vida não é justa, ou é? Outra dúvida surgia. Pra salvar a noite, precisa-se de setenta gotas, isto, para acabar com a nostalgia, para fazer chegar o dia, mas as gotas fizeram-se ser poucas, então mais vinte e acabou a novalgina.

Os olhos pesam e um esboço de sorriso foi desenhado em seu rosto, esboço estimulado pela dopagem e, intimidado pela escuridão, esta, provocada pela cortina que barrava a luz do luar.

As pálpebras abrem-se novamente, mistura-se uma vontade de continuar estirado na cama com a de levantar a cabeça. Nem um nem outro, ele se levanta de cabeça baixa, o efeito do “sonífero” passou, a noite passou, tudo passou, mas a agonia de ter novamente aberto os olhos continua. Já são vários dias sem apetite, dois sem comer, centenas sem chorar ninguém para desabafar e, o gosto amargo na boca, gosto da verdade.

Após horas inerte, recebendo algumas críticas por parecer um velho cansado, ele se levanta da frente da televisão desligada e toma rumo da rua, nesse meio termo, sente o mundo girar, a vista falhar, mas o que é motivo de medo, virou esperança.

_ Quem sabe não fico pelo caminho e descanso de mim.

Do portão, para rua, da rua para sombra, da sombra pro morro poeirento e estranhamente triste. Um morro cheio de eucalipto, plantados pelas mãos dos homens, a terra machucada pelas mesmas, marcas de fogo e namorados nas árvores, e algo mais, algo que o fez ir até ali, a solidão, não total, no entanto, a mais possível no momento, não havia ninguém o notasse naquele instante, achou ótimo.

Ele corre em disparada pelo mato, não vê a hora de gritar, sua respiração é mais forte que o normal e que o necessário. Lá de cima a cidade parece dormir em pleno meio dia. O sol parece querer castigar e um grito sai forte e espontaneamente. Um grito de dor, de desabafo, quase conseguia ver o sofrimento saindo e se espalhando pelo ar. Mais dois gritos e os joelhos se rendem ao chão, a lágrima novamente não aparece, porém o grito já o aliviara o bastante pra agüentar mais alguns dias.

Enzo Pinho
Enviado por Enzo Pinho em 28/03/2007
Reeditado em 08/04/2007
Código do texto: T428387