Ser ou não ser

Dos onze aos quatorze anos de idade eu cursei o Ensino Fundamental em um colégio de elite em Pará de Minas. Sofri muito, porque eu simplesmente não me enquadrava naquele mundo. Para começar, eu não saía – numa época em que o verbo mais conjugado entre os adolescentes, nos intervalos das aulas, era justamente este: SAIR. Sair nos finais de semana significava: “Eu aproveito a vida, sou importante, tenho amigos, faço parte da turma”.

Eu não fazia parte de nada.

Até o início da década de 90 eu não existia para a sociedade, só para a minha família, que se preocupava com o fato de eu ser tão introspectivo, tão mergulhado em meu mundo interior, sozinho, enquanto meus colegas curtiam a vida como todo adolescente devia curtir: saindo, paquerando...

Para aqueles adolescentes, não sair significava não existir, não viver. “Você não sai, não aproveita a vida”, costumavam me dizer. Eu ouvia isso, mas não entendia, porque eu vivia e aproveitava a vida intensamente, do meu jeito. Meu maior prazer era a leitura. Eu praticamente lia um livro por tarde, deitado no grande sofá da sala de visitas da minha casa, sem ninguém para me incomodar. Eu me desligava do mundo exterior e mergulhava nas histórias com enorme prazer, viajando por cenários incríveis, em histórias emocionantes, contadas por mestres como Marcos Rey, Lúcia Machado de Almeida, Stella Carr, Júlio Verne e Agatha Christie.

No início dos anos 90, quando eu descobri autores como Rubem Fonseca, Fernando Sabino e Edgar Allan Poe – e me recusava a trocá-los por uma ida ao Bar do Geraldinho sábado à noite –, a pressão para eu sair aumentou, porque eu TINHA que beber, TINHA que ficar com as meninas e provar um monte de coisas para um monte de gente. E eu acabava saindo. E era como voltar àquele colégio e ter que assistir sem vontade àquelas aulas horríveis de Danças e Teatros, Educação Moral e Cívica, História e Português. Cheguei até a ficar com algumas meninas, mas quando isso é feito apenas para cumprir uma obrigação social, é ruim, não dá prazer.

Ali, no antigo Bar do Geraldinho, na Rua Coronel Domingos, a juventude se encontrava para ficar parada na rua e nos passeios bebendo em pé e vendo os carros passarem cantando pneu e fazendo fumaça com o som no talo: mais ou menos o que acontece hoje no Stop & Shop e em outros pontos da cidade na sexta ou no sábado à noite. Quando eu sentia que minha obrigação tinha sido cumprida, eu saía de fininho, e ainda aproveitava um restinho da noite em casa, assistindo a alguns programas e filmes da madrugada.

Sofri, porque resisti à onda, ao modelo padrão de juventude que vigorava na época, e o preço que paguei por isso foi viver à margem, fora das turmas de garotos que bebiam, saíam e ficavam com as meninas.

Minhas angústias terminaram em 1992, aos dezessete anos, quando descobri a obra do escritor anarquista Roberto Freire, que mudou a minha vida: "Cleo e Daniel", "Ame e dê vexame", "Sem tesão não há solução" e "Coiote", livros que me mostraram a delícia de ser aquilo que se é, de corpo e alma, sem se preocupar com o que os outros pensam.

Em 92 e 93, em Belo Horizonte, participei de palestras e oficinas do grupo SOMA, fundado pelo próprio Roberto Freire, e aprendi a me conhecer melhor e a valorizar o que havia de mais verdadeiro e original em mim.

Minha vida melhorou muito depois disso, e até hoje, graças à Somaterapia, mantenho uma postura crítica em relação a uma série de padrões sociais que, a meu ver, impedem-nos de sentir a alegria de sermos o que realmente somos. Tais padrões acabam criando para nós uma felicidade artificial, baseada em coisas efêmeras, como ter o carro importado mais caro, receber o prêmio “Garra Profissional” do ano, assumir um cargo de gerência numa grande empresa, ser o melhor aluno da turma, ter um apartamento de luxo num bairro nobre, ser invejado por todos pela riqueza, beleza e poder, etc. Tudo isso pode ser até bom, desde que não sacrifiquemos nosso ser original e único, nosso prazer de viver e sentir o mundo, nossos sonhos mais profundos e verdadeiros, trocando-os por projetos de vida artificiais, ligados muito mais ao mundo da aparência que ao da essência.

Termino esta crônica citando o mestre Roberto Freire, escritor marginal, que eu admiro muito:

"Eu sou terapeuta e posso dizer que 80% dos meus clientes têm problemas psicológicos por não estarem fazendo o que gostariam de fazer. As pessoas fazem, convencidas pelas suas famílias, o que o meio social prefere; isto de fazer o que é imposto provoca nessas pessoas um grande sofrimento, que muitas vezes estoura fora do trabalho, estoura em sexo, em agressividade, em equilíbrio mental. Observando estes casos você vai ver como a forma de vida dessas pessoas é imprópria para elas. Numa sociedade como a nossa (...), as pessoas sensíveis, cujo projeto de vida não está dentro do que espera o meio social, sofrerão muita repressão; e esta é uma repressão muito danosa, pois é castrativa. Uma pessoa que não faz o que precisa fazer, tende a adoecer, perde, no mínimo, a identidade e o auto-respeito". (Roberto Freire. Sem tesão não há solução. 1990).

Flávio Marcus da Silva
Enviado por Flávio Marcus da Silva em 10/05/2013
Código do texto: T4284554
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