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As bonecas

 
Meninas, em sua maioria, sonham com bonecas. Uma bela Susi, sonho inviável para a bolsa da costureira... Anos 70, não haviam encurtado a distância ao Paraguai, muito menos à China. Sobras das roupas por encomenda, retalhos vestiam de prenda bonecas de pano. Sem rosto, sem fama, magrelas como a boneca da Estrela. A farra de brinquedos ficava por conta de recortes de jornal. Bonecas, móveis, utensílios para casa espalhados pelo chão de tábuas enceradas e brilhantes, formavam cenários para contos em preto e branco. As bonecas mais luxuosas vinham em cartelas. Cabeçudas, destacáveis, acompanhadas de roupas de papel com presilhas para vestir. Houve a vez das bonecas nos álbuns de figurinhas sorteados no colégio. No recreio, ganhos e perdas de figurinhas, a tapa, no vira-e-revira em cima da carteira de dois assentos. Era a época das coleções de chaveiros e calendários de bolso. Alguns, preferidos pelos meninos, meninas não podiam ver. Três meninas, três Marias, tinham suas predileções.  A menina, do brincar de papel, ganhou chocolate por redação premiada; Rosinha, que preferia jogar bola com os meninos, disfarçava-se de Juca; Florança, com bonecas de plástico, evitava se enturmar. Parecida com um sapo, braços e pernas abertos, a boneca sem cabelo de Florança mal merecia uma fralda. Não vestível, não servia à brincadeira. Outras bonequinhas, minúsculas como o diminutivo - apelidadas de aborto - eram enfeitadas de tule para posar nos bolos de festa de noivado e casamento. Já aqui, havia trabalho remunerado, que rendia à menina, livros comprados em banca de revista. A brincadeira consistia em ajudar Dona Betty, mestre da arte culinária e florista, que fazia doces, salgados e grinaldas para primeira comunhão, casamento e outras festas! Esta atividade rendeu à menina leitura dos estadunidenses Hemingway e Steinbeck; e dos nacionais, José de Alencar, e seu protegido, Machado de Assis. Rosinha, hoje navega nas águas da assistência social, lidando com adolescentes que brincaram e se queimaram com drogas. Alguns casos, ainda se ganha. Outros, o corpo, ultrapassado os limites da tolerância, não toma jeito e perece. Florança, depois de alguns abortos, tentou ter filhos, não conseguiu. Atribui-se a isto, sua esquizofrenia. Após internações forçadas, não quer mais brincar. Mantém-se distante de sua fingida família. A menina, acostumada a papéis, brinca de buscar justiça por meio de processos e a contar histórias bobas na terra do nunca - a internet - num incansável faz-de-conta.