Hora de acertar os ponteiros.

Chorando copiosamente, aquela moça me contava. Ao ar livre, numa feira de Buenos Aires, o seu primo de dezessete anos fora assassinado. Era líder estudantil no colégio onde estudava e isso era por demais arriscado. Não! Um rapaz assim, tão jovem, não saberia que a morte viria buscá-lo com um sarcasmo tão macabro e absurdo. O irmão daquela moça também tombou naqueles anos 70. Nem militância política ele tinha. Foi devolvido à família no caixão, deformado, faltando-lhes as orelhas.

O rosto da moça, que chorava e narrava o caso maquiavélico, me deixou inquieta, angustiadíssima e sem dormir por várias noites naquela São Paulo que acolhia imigrantes de todos os lados. Ela tentava reorganizar a vida com a família. Minha aluna no pré-vestibular, me confiou sua dor sem constrangimento do rio que lhe vertia dos olhos.

Jorge Rafael Videla no poder naquela Argentina cinzenta e melancólica, e a sociedade lutando qual paciente desenganado na UTI, buscando um oxigênio distante, proibitivo e muito, muito caro.

Na conversa com a moça, respirando o seu pesadelo, observando com compaixão as suas lágrimas grossas por uma quantidade infinita de sal, entendi um pouco, só um pouquinho, da infâmia daquele momento. Foi tão perto que senti aquela dor! Dor tão doída, dolorosa, escabrosa. Dor com um medo visceral, sem jeito, sem luz.

Hoje videla partiu. Permito escrever seu famigerado nome em minúsculo. Carregou consigo dois nomes de santo. Que despropósito, que ironia!

Permita-me uma pequena conversa, vivi (vou te chamar assim, tá?). Nada de intimidades, por favor. Mas tento falar para um ignorante, um boçal, alguém que precisa ser tratado como um ser incapaz. Então, fica vivi.

Como vai se explicar? Sim, porque agora você vai ter que acertar os ponteiros, oras. Acho que, na sua situação, não vai ser confortável e nem vai conseguir ser convincente prá ninguém. Aqui, as pessoas tinham medo de você e do que você representava, pois todos os carrascos são iguais, mas na outra dimensão, você não vai conseguir enganar não.

Vai explicar que mandou matar quase 30 mil pessoas, fez trocentas desaparecerem e sequestrou bebês aos montes?

Na Edição impressa da Globo News de hoje, dia 17/05/2013, aparecia uma fala sua:

“Havia vários métodos para desaparecer com os corpos. Por exemplo, atirar os corpos no mar ou em rios. Arremessá-los de avião ou de helicópteros. Enterrá-los em lugares clandestinos, em fossas comuns ou individuais. Às vezes, em cemitérios, mas às vezes na província de Córdoba, em lugares descampados, fora das cidades. Outros eram queimados em fornos, ou eram eliminados por fogo: se utilizavam pneus velhos de veículos e dentro se metia o corpo e se incendiava tudo”. As declarações fazem parte do livro “Disposição Final - uma analogia à solução final”, escrito pelo jornalista Ceferino Reato, que o entrevistou na prisão algumas vezes consecutivas.

Então, o que vai dizer? Acaso você sabe que matou 30 mil famílias e não 30 mil pessoas? Sabe que , para uma mãe, um filho é a certeza da vida, da beleza, da continuidade de uma história construída com luta, sacrifício, sonhos e... amor?

Tudo bem, sei que, prá você, a palavra amor é meio estranha. Mas é um sentimento que existe. Um valor perene, intrínseco aos corações humanos.

Sei que você não compreendeu, porque não sabe o significado da palavra “humano”, mas estou tentando te explicar alguma coisa.

Muito bem. Mas essa coisa chamada amor existe, vivi. É um sentimento bom, profundo, sincero. As mães, pais, avós, irmãos e amigos daqueles que você matou passaram a chorar continuadamente a dor do inconformismo, da impotência, da saudade. Choraram e sofreram a exaustão por saberem que um dos seus (ou vários dos seus) estavam sendo ultrajados, amedrontados e torturados por facínoras como você. No choro da solidão e da humilhação mais aguda tinham a certeza de uma morte indigna, urrando nas dores mais perversas.

Acabou, vivi. Acabou. Ainda existe choro, almas inquietas, fotos vistas com lágrimas, silêncio e saudades. Ainda existe procura. Busca por algumas pistas dos corpos. Aqueles bebês, hoje homens e mulheres... aonde estão? O que estão fazendo, pensando, acreditando? Conhecem mesmo a própria história? Sabem que foram arrancados dos braços daqueles que realmente os amavam ? E tudo por tua ordem.

Não tenha dúvida, vivi. Existem várias vidas. Você e os seus comparsas vão ter que responder por tudo e vão ter que reparar as feridas ensanguentadas que fizeram nascer.

Aproveite agora para descansar, vivi. Peça ajuda para lavar as suas mãos que fedem a sangue social. E haja sabonete! Se as manchas vão sair, não dá prá saber. Mostre as mãos sujas para Jesus.

Acabou, vivi. Agora é a sua vez! É hora de você contar a que veio. Não para nós. Ninguém de nós precisa de você para absolutamente nada nesse mundo. Mas conta com detalhes tudo o que fez, o quanto matou, o quanto mutilou, torturou, roubou sonhos e sorrisos, paixões e esperanças. Conta o que fez com os corações das mães e de filhos para Aquele que realmente sabe das coisas. Seja homem pelo menos agora, vivi: conte .

Vera Moratta
Enviado por Vera Moratta em 17/05/2013
Código do texto: T4295965
Classificação de conteúdo: seguro