Um pequeno balanço

A magia das palavras inseriu-se num tempo para o qual a lembrança se mistura ao esquecimento e à fantasia, e eram em alemão até que amigos e irmãos descortinaram os sons - alemoados, como convinha à São Bento de então -, da pátria língua que grudou nos olhos, no cérebro, nas cordas vocais. O cheiro do papel dos cadernos e da Cartilha do Primeiro Ano e Dona Zezé cimentaram a paixão. Paixão para sempre.

De lá para cá, andamos sempre juntos, muito juntos; a palavra era quase tudo; o que sobrava, era desafio da emoção que as palavras tentavam explicar.

E aprendi a subir em árvores e ter medo das mais altas, mas evitava olhar para baixo, e um dia decifrei nuvens e ventos para saber das tempestades, absorvi silêncios de pássaros para saber de perigos, adivinhei chuvas na ausência das borboletas.

Minhas pandorgas voavam como borboletas.

À visão do primeiro infinito, fui sequestrado pelo mar em sua mansidão e, muito mais, na força das ondas e nas gaivotas que desafiam o voo e riscam a superfície sem nela tocar . Vindo da montanha, no mar descobri o sentido da palavra horizonte.

Um dia fui apresentado à palavra “azimute”.

Num espaço qualquer, entre o agora e o antes, aprendi a pregar botão, me apaixonar e estar disposto a morrer de amor ou em busca dele, entalhar ideais, engolir desilusões, garimpar sabores e odores e partilhá-los sob a forma de alimentos, dar as mãos sem a preocupação de desinfetá-las depois, e dividir a alma.

Nunca atinei para os perigos que rondam a doação da alma.

Trilhei caminhos no chão e no ar e nas águas que me disseram outros sons em outras palavras de outras bocas em outras pátrias e outras cores e outros viveres, isquei anzóis e fiz da brisa companheira, remei contra correntes que me ensinaram a ser rápido com o remo e a segurá-lo com firmeza, desvendei segredos que permanecem cobertos para quem só crê em seus ficares.

Senti o sopro de Deus na viagem do pólen.

Vi meus filhos serem absorvidos pela vida bem antes de me dar conta e pedir para ficarem mais um pouco e espero pelo Igor com ânsias de deslumbramento.

A meus filhos disse a maior dor: “A mãe morreu”.

Aprendi a amar um amor maduro.

Agora, passei de 60. Com a Cartilha do Primeiro Ano nas mãos e todo um mundo por descortinar.