Mundo Cão

Mundo cão

Estatizou-se ante a paisagem, tirou no lenço do bolso e levou aos olhos, mas o lenço estava tão molhado quanto o resto, toda a sua pessoa, desde a cabeça aos pés, como se ressumbrasse agua, sujo o corpo, magoado o espirito e ambos infelizes. Não atinava com as razões do obvio que lhes recomendava a prudência, nem mesmo a falta de objetividade da opinião valorativa expressa ou da maneira confortável e civilizada de viver em um mundo interior, sem qualquer semelhança com o tugúrio tosco que se lhes impusera a existência, sem qualquer semelhança com os sonhos juvenis que acalentara, ainda que complexos e voláteis, permanecia incrível em sua mente como uma intuição involuntária, inconsciente, mas nem por isso menos afetiva e verdadeira. Queria regressar ao mundo donde havia sido retirado por uma ultima e desnecessária violência. Assim como a morte definitiva é o fruto da ultima vontade de esquecimento, como a aspiração das lembranças pode perpetuar a vida, os anátemas, calunias insultos e vexames sobre a memoria do infeliz que tão somente não soube viver e nem lhes tomaram as mãozinhas tremulas pela falta de tudo e o conduziram à sala da luz. Antes o julgaram, enclausuraram como a uma fera, como se fosse permitido o macabro exemplo, por uma legislação caótica e irresponsável que ante a possibilidade de educar ou punir, faz uso da segunda opção sem se importar com o caos que a imprudência tem gerado mais mortos impúrberes que tinge de sangue o cenário de vidas profanas e macula a inocência de tantos outros que seguiram em hora errada o caminho da luz... Mas, agora, aquele homem humilde, pobre, sujo e, carente de tudo que a vida não lhe propiciou, mas que tirava dele o ultimo amigo, o companheiro que a vida nas ruas havia colocado em seu caminho e que ele cuidava como se um filho fosse, caído ao chão, debruçado sobre uma poça de sangue, com o corpinho crivado de balas, se despedia do único amigo, que nem mesmo reclamaria o corpo para dar-lhe um funeral digno, porque não poderia arcar com as despesas, mas quem sabe, talvez encontrasse nas ruas, ou mesmo no lixo um jornal sensacionalista que noticiasse o trágico acontecimento, de cuja manchete estaria assim gravado: acerto de contas entre traficantes faz mais uma vitima, dessa feita, uma criança sem passagem, sem família e sem nome perde a vida de forma violenta. Que poderia ter tido tudo, mas que não teve absolutamente nada, privada que foi, sem sequer ter tido o direito de peticionar ao Estado e pedir, no mínimo clemencia, porque nem escrever sabia.

Airton Gondim Feitosa