A velha do thrash metal


Ela toca thrash metal alto o bastante para sacudir o pequeno prédio de três andares. Três andares e apenas três apartamentos, todos com sacada para a rua da igrejinha branca, em Madureira. Um casal de meia-idade, sem filhos, mora e sofre o diabo no último. Maria Augusta, que atualmente tira dúvidas de francês comigo, resiste com a avó no primeiro. E entre os dois, além de thrash metal, vai tocando também a sua vida a mulher quase octogenária que nas tardes de terça e quinta-feira (não se sabe o porquê desses dias da semana), durante mais ou menos uma hora, põe no aparelho de CD os discos do neto desde que este se mandou do subúrbio para a Barra da Tijuca com uma deusa nagô do Império Serrano. Isso já dura cinco anos, e o neto nunca mais deu as caras no pedaço. 

Na tarde em que começamos as aulas, eu tinha acabado de ensinar a minha aluna a famosa fala de Blanche Dubois em Um bonde chamado desejo — “Voulez-vous coucher avec moi, ce soir?” —, quando as paredes da sala de visitas entraram a vibrar com intensidade, causando-me calafrios. (Pior: a frase de Blanche, que havia muito não encontrava um momento tão auspicioso desde que passei a usá-la em minhas explicações particulares, foi para a cucuia. Retomá-la sem um certo clima iria me entregar de bandeja. Quando a mulher não está muito a fim de você, essas coisas soam um pouco como canalhice, por mais poéticas que lhe pareçam.) 

“A velha do thrash metal”, explicou Maria Augusta, divertindo-se com a minha cara assustada, como se estivesse mencionando o título de um filme em cartaz no shopping do bairro. Em seguida, contou-me tudo o que refiro no primeiro parágrafo. 

Eu não ia conseguir dar uma boa aula nessas condições. Resolvemos esperar o término da récita infernal. Maria Augusta abriu uma latinha de cerveja e trouxe para mim um copázio de água tônica com vários cubos de gelo. Fomos para o sofá e conversamos longamente sobre os tempos da faculdade. E ficamos nisso até que minha amiga, apurando o ouvido, comentou: 

“Ela já vai parar. Sempre encerra com essa música que está tocando agora.” 

“Conhece ela?”, perguntei, depois de sentir um calafrio ainda pior do que o primeiro. 

“Não, não conheço.” 

“É ‘Fade to Black’, do Metallica”, respondi. 

Maria Augusta sorriu-me com uma expressão de curiosidade nos olhos. 

“Não vai me dizer que está por dentro desse estilo de música. Até onde me lembro...” 

“Claro que não”, atalhei. “Mas ‘Fade to Black’ foi muito badalada por causa da letra. E é isso o que me preocupa na sua vizinha. A letra é puro desalento, quase um bilhete de suicida. Acho que o neto pisou na bola deixando-a tão sozinha. Tenho certeza que ela sabe o que está ouvindo, pelo menos no caso dessa faixa. Não sei como ainda não meteu uma bala na cabeça.” 

“Exagero, Luiz. São cinco anos. Dava para se matar umas quinhentas vezes.” 

“Sei que é exagero. Mas não deixa de ser superestranho que uma mulher de setenta e nove anos fique obcecada justamente por esse sucesso do Metallica.” 

Maria Augusta é leitora voraz de Lacan e embarcou numa explanação que não me foi possível acompanhar muito bem. Para dizer o mínimo, veio para cima de mim com um conceito novíssimo em psicanálise (o nome-do-neto) e disse-me que D. Hercília (a velha-do-thrash) é atualmente apenas recado e mensageira de si mesma, o que quer que isso signifique. Mas concluiu: 

“Pessoas assim não se matam, o que é uma pena.” 

“Maria Augusta!” 

“O que é uma pena para si mesmas”, esclareceu minha amiga. 

Quando me despedi, Maria Augusta deixou demorar nos lábios o sorriso maroto e sacana de geminiana do segundo decanato, e disse: 

“Não se preocupe com a influência de ‘Fade to Black’ no psiquismo de D. Hercília. Ela é completamente surda.” 


[29.3.2007]