Quem diria...

Trás sua boca aqui, que eu não posso ir aí. Assim tudo começou. Eu, debilitado pelo tempo na cama e o pouco que saia, estava no banco do passageiro do carro, com ela sentada ao volante, com o carro parado em uma rua qualquer onde a encontrei – quem dirigia aguardava fora do veículo. A vontade de beijá-la era tanta – e justo por que fazia tempo sem tomar meu chá de Simancol - que nem fiz conta da minha situação, minha aparência frente à sua juventude e beleza. E, presunçosamente, pedi que se aproximasse pois não tinha força, nem equilibro no tronco, para estender meu corpo até ela.

Estupefato, sem me dar conta que podia ser coisa de Deus, a vi estender-se em minha direção se permitindo beijar. Atônito, pensei: o que está acontecendo aqui? Por quê uma garota linda dessas, e jovem, está se entregando a um cara nas minhas condições: tetraplégico, magro, debilitado, tremulo, falando baixo, e respirando idem? Nascia ali uma relação sólida. Mesmo com as dúvidas que se estabeleceriam tanto na cabeça dela quanto na minha.

Sobre as dela não vou falar, sobre as minhas, diante do que já expressei, é presumível. Mas vou discorrer um pouco mais a respeito.

Era tipo assim: um beijo, uma pergunta; um afago, uma pergunta; um plano, uma pergunta. E assim foi por um tempo até que provas vieram como se a responder meus questionamentos. Quais provas? Uma crise de tremor atrás da outra, uma infecção urinária – que me tirava do ar por dias -, atrás da outra, e, claro, a dos NOVE: a caganeira fora de hora. Estaria ali a resposta que me faltava. Pensei então: agora eu quero ver se ela segura essa onda... e SEGUROU! E olha que até eu educar minha alimentação foi onda pra dedéu.

Que resposta mais eu precisava depois de essa enxurrada de testes? De dia-a-dia! Tudo isso ai, os tremores, as infecções, as desinterias, aconteceram, muitas vezes, nos dois primeiros anos. Mas a resposta chave não veio com um remédio, com um paninho aquecido no pescoço para conter o tremor, nem com os banhos pós desarranjos; a resposta chave não foi dada por ela, nem por quem torcia, ou não, para que dessemos certo. A resposta chave, a que tirou as nuvens duvidosas, tanto da mente de um quanto do outro quem deu foi o tempo. Foi a convivência, o dia-a-dia. E melhor do que dois são DOZE. Doze anos enfrentando as adversidades que se impõem, não só na vida de um, como na nossa, mas na dos casais todos. Adversidades, e diferenças.

Já tivemos arranca-rabo pra peste. Lembra das diferenças? Elas eram as potencializadoras das brigas. Mas a ficha caindo, tipo você lembrando que o grande barato é justo as tais diferenças, tudo se encaixa. - E como se encaixa. Se é que me entende. Homem é diferente de mulher. Logo, um é homem, e o outro é mulher: vontades diferentes, disposição diferente, querer diferente. Um menstrua, o outro não, um tem TPM, confusão homonal, o outro não, um gosta de futebol, o outro nem sempre, ela gosta de novela, ele não. Ele curte filme de ação - quanto mais sangrento melhor -, já ela só assiste drama e romance. E por aí vai. Mas o problema só se instala quando a prepotência, a intransigência, a maldita razão, a impaciência, e falta de humildade, de compreensão, se tornam soberanos frente ao amor.

Outro dia li na internet uma mulher dizendo numa entrevista que num dia amava o marido, noutro queria matá-lo. Mas que não conseguiria viver sem ele. A principio beira a insanidade tal declaração. Mas, avaliando melhor, o que deve faltar, talvez nos dois, é apenas a compreensão de que a diferença é o grande barato e que compreender isso é o tempero que falta. Aqui ainda rola uma zanga ou outra, mas nada que leve um ou outro a querer a morte do parceiro. Misericórdia se a daqui a quisesse... como é que eu ia correr, aleijado?

Viu? Essa mulher, além de linda e guerreira, que você vê aí, ama um aleijado. Mas a que isso deve reportar? À seguinte pergunta: sendo você, homem ou mulher, que se vê cheio ou com algum defeito, seu parceiro ou parceira enxerga, antes destes, os valores que você detém? Consegue conviver e respeitar as diferenças? Se não, o precisa fazer para que a paz reine também no seu relacionamento. Principalmente no seu, que tanto pergunta sobre o nosso.

- Filha, você sabe o quanto foi difícil para nós dois atravessarmos o mar de dúvidas que inicialmente nos invadiu. Além do que tentaram nos impor por não aceitarem que uma relação entre um inútil, como houve quem dissesse, e uma mulher jovem e bela désse certo. Tão certo. Assim, pelas barreiras que transpusemos e pelas vitórias frente às inúmeras batalhas que tivemos que enfrentar, é que venho aqui, em público, sem falso pudor e sem máscaras, chutando o balde, dizer que VALEU, ESTÁ VALENDO E VALERÁ SEMPRE A PENA. Feliz Bodas de Seda e que venha, com a graça de Deus, todas as bodas possíveis.

AMO.

Sinceras desculpas por alguns dos termos usados. Mas, sabedor que sou que um dos pilares da estabilidade dos relacionamentos é a autenticidade, não seria então eu se assim não o fizesse. Além do que, estava tri saudoso de escrever um texto bem longe do institucional do dia-a-dia. De outra forma, que atire a primeira pedra aquele, ou aquela, que nunca teve uma caganeira. Com todo, e o devido respeito. 
(Sobre o tempo juntos, aqui atualizando, 20 anos já se passaram, nesse 19 de maio de 2021. Sim, Quem Diria - e ela está aqui ao lado me perguntando se eu topo mais 20, você crê?)