** Final de tarde, meu pai ainda não chegara, minha mãe terminava de preparar um bolo.
Havia um caderno de receitas que, com a prática, ela não precisava consultar, no entanto o caderninho sempre marcava a sua presença.
 
Mainha utilizava uma batedeira eficiente demais na qual misturava todos os ingredientes.
Não existia a menor pressa. Minha mãe seguia as etapas necessárias ressaltando uma disciplina invejável.
 
Seus cinco filhos permaneciam quietos na cozinha, apenas observando.
A confusão começava na hora de lamber a mistura da batedeira.
Todos, segurando uma colher, aguardavam ansiosos ela derramar a mistura na forma de bolo.
 
Tôni, meu segundo irmão, tentava colocar ordem na farra.
Minha mãe, confiando na prudência dele, entregava a batedeira para iniciarmos as lambidas.
De repente, o primogênito surgia estrategicamente enfiando a colher de maneira abrupta.
Não tinha jeito, daí em diante apareciam mãos aqui e acolá, a mistura pastosa e doce era logo consumida numa grande algazarra.
Eu, o terceiro filho, e os dois irmãos mais novos pouco aproveitávamos as lambidas, porém a diversão compensava a nossa gula frustrada.
Claro que mainha protestava, pegava a batedeira, jogava água dentro e dizia que, na próxima, ninguém lamberia nada.
 
Uma hora depois, todos estávamos sentados, após o banho, saboreando as fatias do bolo que eram divididas democraticamente por minha mãe.
Meu pai já estava presente.
Terminando o café, ficávamos assistindo as novelas.
 
Mais tarde o primogênito bolava uma brincadeira que demorava horas e invadia a madrugada.
Meus pais deitavam cedo e ficavam chateados quando acordavam escutando uma discussão.
Se isso ocorria, a solução era encerrar a brincadeira e obrigar a turma a se deitar.
 
Recordando tais momentos que aconteceram um dia desses, confesso que fico bastante emocionado.
 
Quanta empolgação!
Quanta espontaneidade!
Quanta poesia!
Quanta vida!
 
** Havia as competições que Elsimar, meu primeiro irmão, sugeria.
Certa ocasião nós disputamos quem conseguiria beber mais água.
Entusiasmado eu já caminhava para a conquista, os copos avançavam consecutivos, porém não pude superar os limites do corpo humano.
Não resisti, vomitei, os meus pais acordaram, a disputa cessou.
 
Num quarto estreito ficavam dois beliches.
Quatro filhos ocupavam as quatro camas, o meu irmão caçula ficava no quarto dos meus pais numa cama separada.
 
A galera ara medrosa.
Talvez não fosse à toa.
Era habitual escutarmos batidas na porta da sala.
Não era uma ilusão coletiva, parecia alguém realmente batendo como se viesse nos visitar.
Considerando o horário bem avançado, não poderia ser uma visita.
Minha mãe esclarecia que o local da residência, no passado, foi uma encruzilhada, portanto certamente as almas errantes decidiram rondar a nossa morada.
Saber disso não solucionava coisa alguma, contudo as explicações de mainha sempre tranqüilizavam a família.
 
Tentávamos dormir.
Meu pai dormia rápido demais e roncava alto.
Mainha também não perdia tempo.
 
Cá, no quarto dos valentes, Tôni era o autêntico guerreiro.
Os outros três, incluindo eu, após quatro ou cinco minutos de silêncio, perguntavam a ele:
_ Tôni?
_ Diga!
_ Você já está dormindo?
Muito tolerante e gentil, ele respondia:
_ Não.
_ Até amanhã!
_ Até amanhã!
 
Esse diálogo engraçado acontecia umas quinhentas vezes.
 
Após incontáveis “Até amanhã!”, eu percebia que os meus três irmãos estavam dormindo.
E agora?
 
Eu não pensava duas vezes, abandonava devagar o meu beliche e seguia até o quarto dos meus pais.
No pé da cama, no cantinho, eu me deitava e descansava gostoso quase tocando os pés de painho.
Naquela ocasião eu cabia no cantinho da cama.
Ter os pés de painho próximo nenhum incômodo causava.
Ele não tinha chulé.
 
** Foi um dia desses!

Hoje os meus pais não habitam mais o palco terreno.
Perdi o contato com os meus irmãos mais velhos, Elsimar e Tôni,
Meus dois irmãos mais novos, Eder e Silvio Mário, residem na mesma casa, atualmente um casarão contendo um espaço enorme, gritando uma saudade indescritível.
Minha irmã-filha, Fernanda, que não era nascida no período citado acima, casou cedo.
Ela mora numa outra rua do bairro onde moram os meus irmãos.
Ontem fiquei a tarde toda conversando com Fernanda enquanto ela tomava conta de Alice, sua segunda filhinha, com apenas três meses de existência.
 
Eu moro sozinho num bairro próximo.
Na hora de dormir não posso mais perguntar a Tôni se ele está dormindo nem repito “Até amanhã!”.
 
Foi um dia desses!
Foi muito bacana!
Foi maravilhoso!

Trocaria tudo para voltar a tentar lamber a sobra da mistura do bolo que minha mãe preparava.
Trocaria tudo para novamente ouvir as batidas do insistente fantasma.
Trocaria tudo para outra vez aguardar os meus valentes irmãos e o corajoso Tôni adormecerem.
Sem vacilar, eu adentraria o quarto dos meus pais, pisando em ovos, muito discreto.
Escutaria painho roncando alto e observaria mainha serena.
Sem os meus pais notarem, eu me deitaria no cantinho, encolhidinho, podendo, então, viajar rumo aos meus sonhos infantis.
 
Ah! Se eu fosse o Superman do filme que destaca Christopher Reeve!
Na cena derradeira o herói gira a Terra ao contrário desejando salvar a namorada Lois Lane...
 
Eu só pararia quando estivesse outra vez no pé da cama dos meus pais, completamente protegido, me sentindo assim a pessoa mais feliz que a humanidade já conheceu.
 
Um abraço!
Ilmar
Enviado por Ilmar em 01/06/2013
Reeditado em 05/06/2013
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