Chocolate engorda?

A hora da refeição, tornado momento sagrado do dia, é hábito arraigado das inúmeras famílias italianas que se assentaram em nosso país. Aqui em São Paulo, apesar da cadência alucinada da vida da metrópole, ainda se vêem, cá e lá, resquícios desse hábito. Assim foi sempre em minha infância: a família reunida à mesa, meu pai - filho de italianos - à cabeceira, minha mãe - neta - servindo os pratos preparados diariamente com esmero e simplicidade em igual medida, a polenta com frango das quartas feiras, a macarronada do domingo, o arroz-com-feijão do dia-a-dia. Nessa hora diáfana, não se podia discutir: falavam-se amenidades, e mesmo que o clima não fosse dos melhores, evitava-se qualquer tipo de confronto ou atrito.

Tentei preservar o hábito para trazer, ao menos uma vez ao dia, meus filhos à mesa. E assim o jantar acabou se tornando o momento em que estamos reunidos para a troca das tais amenidades do cotidiano, ou para ao menos poder olhar uns nos olhos dos outros e saber das novidades.

Mas um adolescente faminto, uma criança cuja atenção está toda voltada para dentro de si mesma, e um homem desgastado pelo dia de trabalho estafante nem sempre propiciavam grandes diálogos. E assim restava-me assumir a palavra, tentar encontrar um assunto leve e de interesse comum, a fim de estimular meus lacônicos comensais.

Normalmente eu aproveitava esses momentos para divulgar as vantagens de uma boa alimentação, fundamentando com teoria o imenso prato de salada à frente, justificando a batata cozida em detrimento da frita, ou ainda elogiando as virtudes do quiabo e da abobrinha. O assunto alimento sempre vinha à tona, afinal estava em alta na mídia e sobre nossa mesa. E eu sempre acreditei que água mole em pedra dura, etc.

Assim, numa dessas preleções (ou, menos pretensamente e mais realisticamente, num desses monólogos), que deve ter-se originado, não sei bem ao certo, com a defesa do uso do missô-shiro como bálsamo para um estômago abarrotado de junk food, o assunto descambou para o chocolate. Que era uma delícia mas que deveria ser consumido com moderação, afinal possuía muito açúcar e gordura. Que era melhor, ao sentir aquela vontade de um doce, comer uma fruta. Que, afinal de contas, chocolate engorda.

Minha filhinha, que até aquele momento parecia não estar fisicamente ali, recolhendo com vagar grãozinhos de arroz sobre um prato em outra galáxia, levantou o olhar e emendou, numa rapidez muito pouco usual ao seu peculiar ritmo:

- Não, mamãe, chocolate não engorda. Quem engorda é a gente.

Uns segundos de silêncio, e em seguida rompemos em gargalhadas, para total espanto daquele anjo pretensamente alienado, que nos olhou com uns lindos olhos castanhos muito arregalados e uma expressão séria, como se dissesse: ué, o que foi que eu falei de mais?

Tem razão, minha linda. O chocolate não engorda, permanece delgado em sua embalagem prateada. Nós, os gulosos, é que transformamos seu delicioso conteúdo em concentrações de células adiposas, em lugares já suficientemente salientes de nossa anatomia. E assim concluímos que ela estava absolutamente certa, e que tinha herdado da avó paterna aquela lógica lusitana característica, tão excessivamente correta e clara que é confundida, erroneamente, com falta de inteligência – mas que é, pelo contrário, indicativa de uma inteligência sutil acima da média.

Já que ela, com toda razão, não havia compreendido o motivo de nosso tolo riso, voltou ao seu mundo paralelo, e continuou recolhendo grãozinhos de arroz com a altivez e a indiferença dos que pairam muito acima do julgamento alheio.