UMA EXISTÊNCIA VULGAR


Arfando, conseguiu subir pela escada do comboio Alfa pendular, momentos antes deste se por em movimento. Entrou no corredor da segunda classe e, depois de arrumar a mala, sentou-se num dos lugares vagos.
O comboio foi ganhando velocidade e a paisagem desfilava vertiginosamente através da ampla janela. Distraído com o movimento e o balancear do rodado, pensou então na sua vida.
Sempre fora caseiro, por influência da cara-metade. Ela era muito tímida, introvertida e pouco sociável. Tinham dois ou três casais amigos e dos filhos passava-se tempo sem receber notícias, cartas ou telefonemas. Ao longo da vida em comum foram uma dúzia de vezes à praia e raramente viajavam para longe.
Viveram assim em semi clausura até que um cancro a levou.
Seguiu-se um longo período de depressão e dor, passou muitos dias sem sair de casa, não lhe apetecia ver gente, limitava-se a fazer algumas aquisições na mercearia da rua, por vezes comprava umas postas de peixe fresco no mercado, mais distante. Apreciava sobretudo carne, que comprava e congelava, poupando assim frequentes viagens.
Gradualmente foi percorrendo distâncias cada vez maiores, orgulhava-se disso e também de o fazer sem se cansar.
Sabia que lhe fazia bem à saúde. Aos poucos, ganhou o gosto pela caminhada, mas detestava fazê-lo com sacos na mão.
Então deu-se uma autêntica revolução no seu dia-a-dia, até então monótono.
Progressivamente, passou a aventurar-se cada vez mais e num sábado à tarde foi ver uma coletividade que existia há bastante tempo num bairro vizinho. Era muito frequentada pela terceira idade, muitas das pessoas sós, viúvas ou separadas. Organizavam-se sessões de bingo e também matinés dançantes. Achou divertido e passou a ir lá com assiduidade, substituindo assim a televisão. Amigos que foi conhecendo, casamenteiros e sabendo da sua situação, apresentaram-lhe então alguns corações solitários. Um deles, a Júlia, era reformada dos Correios, setenta anos joviais e um bom pé de dança. Como ela adorava dançar... E sabia-o como ninguém! Ensinou-lhe os vários estilos, sentia que a empatia entre eles era óbvia, a amizade cresceu exponencialmente. Passaram a estar sempre um ao pé do outro, conversavam juntinhos, davam muitas vezes as mãos, beijos, apenas os castos e dois dias antes desta viagem falaram a sério, ele propôs-lhe viverem juntos, ela só aceitava se fosse em sua casa. Ele condescendeu.
Filhos tinha dois, uma rapariga e um rapaz, ambos casados, ela dera-lhe dois netos, vivia emigrada na Suíça, em Lausanne. Nunca a tinha visitado porque era longe, detestava o avião e de comboio ou de autocarro só viajava se fossem percursos pequenos. Desde que emigrara, ela viera cinco vezes ver os pais, depois apenas uma vez, quando ele enviuvou. Telefonara-lhe na véspera a comunicar a sua intenção de viver com uma mulher que conhecera há alguns meses. Ela reagiu bem e ele ficou muito feliz com isso.
O filho vivia na Maia, perto do Porto e era a razão da sua viagem de comboio. Também estava casado, sem filhos, tinha uma boa profissão, estável, ganhava bem. Embora gostasse muito da filha, o João era o seu preferido, meigo e muito seu amigo. Fora visita frequente enquanto a mãe fora viva, depois só o visitara duas vezes. Ele entendia, o filho tinha a sua vida e a nora não era muito das suas simpatias. Antipatia mútua, sempre o soubera.
Agora ia aproveitar para conhecer melhor a zona do Porto e também a casa dele, não mais de dois dias, aproveitando o fim de semana. E comunicar-lhe a boa nova. Como receberia a notícia? Os filhos não gostam de ver as mães substituídas, mesmo que já não estejam entre os vivos. Ficou um pouco apreensivo. Depois, esqueceu por momentos as preocupações e fechou os olhos. A viagem demoraria mais de duas horas e meia, podia dormitar um pouco.


11/06/2013