NÃO QUERO REGRESSAR À TERRA MÁGICA

Acordei de ressaca. Não, eu não bebi litros e litros de cerveja enquanto assistia à partida de futebol entre Brasil e México, onde nossa seleção saiu vitoriosa, por 2 X 0. Também não tomei dezenas de doses de cachaça com meus amigos que não gostam de futebol, enquanto falávamos sobre coisas mais atraentes, como música e bundinha de homem. Mister Feliciano há de concordar comigo: Bundinha de homem é uma coisa linda!

Na verdade, acordei de ressaca de tudo que eu vi e ouvi na manifestação de ontem, aqui em Fortaleza, que fez coro a todos os levantes que despontam em inúmeras capitais e municípios do país.

Acordei cedo, preparei a mochila com garrafas de água congelada, biscoito, toalhas, uma solução de água e vinagre, carteira de identidade, dinheiro pra voltar pra casa, disposição, palavras de ordem e a vontade sincera de mudar as coisas. Fiquei emocionado quando vi a multidão aglomerada junto ao Makro Atacadista, em sua maioria jovens, aparentemente desejosos de um futuro pautado por melhores oportunidades e maiores liberdades civis.

Não tardei em me juntar à multidão, à massa, afinal, respirávamos como um só, todos inspiração e expiração, sem fôlego.

Um pouco depois das 11:30 h, começamos a nos deslocar na direção da Arena Castelão, onde às 16:00 h seria dado o pontapé inicial da 1ª partida da Copa das Confederações em terras alencarinas, sob a bênção de Joseph Blatter, presidente boçal e soberano da FIFA, um senhor estúpido, arrogante e pretensioso o suficiente para ladrar a seguinte pérola: “O futebol é mais forte que a insatisfação das pessoas”.

Durante a marcha, comecei a perceber algumas coisas fora do lugar, senti-me como no jogo dos sete erros: de um lado, incompletudes; do outro, excessos.

Ai, a sede! O calor estava de matar e a aglomeração intensificava a sensação térmica exasperante. Eu levei água de minha casa, como a grande maioria das pessoas que estavam ali, todavia, havia muita gente tomando cerveja, como quem vai à balada, como quem estava ali para se embriagar e criar coragem pra atirar uma pedra ou apenas em busca de entretenimento. Talvez sonhassem em estar dentro do estádio, mas, uma fotografia no facebook participando das manifestações provavelmente pareça mais interessante e, assim, mais sujeita a curtidas e compartilhamentos.

Um rapaz passou por mim com um cartaz onde se lia: “Estou tão puto que resolvi fazer um cartaz”! Ele mal andava, já que constantemente era parado para que o fotografassem, com um sorriso anêmico no rosto, enquanto empunhava o estandarte de sua própria letargia diante da situação na qual nos encontramos naufragados.

Muitos se queixavam do grande número de pessoas, outros queriam saber quando aquilo acabaria, até onde teriam que andar, tinha gente, inclusive, dizendo que não era para se fazer política ali. Como assim? Se o que estávamos fazendo era política em seu sentido mais puro! Eles não sabiam por que estavam lá! Vocês já tentaram sair de um ônibus e foram empurrados de volta, pela multidão que tenta entrar? Você grita, esperneia, diz que quer descer, mas o motorista não escuta, segue caminho, te levando para um lugar que não é o seu. Eu nunca vi tantos rostos jovens, o que muito me alegrou. Mas, em contrapartida, era de dar dó a quantidade de rostos perdidos, no tédio, no riso nervoso, no olhar que não sabia se deveria seguir ou retroceder, por medo da polícia. Ai, a polícia. Alguns deles não entendiam o que a polícia estava fazendo ali e muito menos porque estava tratando os manifestantes com tanta agressividade. Aquilo não era uma Parada das Flores, era uma manifestação contra forças governamentais, forças que não deixam de usar de seus lacaios armados quando se sentem ameaçadas! É claro que haveria conflito! Mas eles não sabiam, pois estavam no lugar errado, na hora errada, pelas razões erradas.

Nossa juventude é desejosa de mudança e precisa desta mudança, mas nossos jovens não sabem como mudar, não foram educados pra isso. A escola lhes ensinou macetes pra passar no vestibular, mas jamais lhes disse como seguir em frente, mesmo que encontre, inevitavelmente, no decorrer da estrada, a indiferença do Estado e a selvageria da polícia.

Os governos e a mídia pedem paz, que sejamos pacíficos, enquanto nos fodem o rabo. É a mesma coisa que pedir com jeitinho, junto ao ouvido da estuprada: “Não grite, vai ser pior pra você, relaxe”. Se eu estivesse dentre estranhos, em uma manifestação estranha, que fala de coisas estranhas e aspira por outras mais estranhas ainda, eu também pediria paz, pois não sabemos para onde correr quando uma bomba explode e não fazemos a menor ideia de onde estamos.

Dentro da própria manifestação havia várias e várias células. Algumas, totalmente imparciais e apáticas, já outras, completamente ressentidas de todos os outros grupos que não lhes pedissem a bênção e não dissessem que eles eram os bambas do protesto. E o mais contraditório era que, justamente a formação destes guetos de sonâmbulos insurgentes, era o que dava ao evento uma aparência de rebanho, tangido ao sabor das bombas de gás lacrimogênio. E aquela homogeneidade, onde bandeiras não podiam ser levantadas, onde o pensamento de muitos foi hostilizado, me preocupou. Havia um autoritarismo assustador em muitas das caras pintadas, em muitos dos cartazes tão vazios quanto as palavras de ordem que papagaiavam incoerências e lugares comuns.

Havia mais egos que mentes. Havia mais dúvidas que certezas. Havia mais festa que protesto. Havia mais zuada que grito.

Os anos 1970 caíram no esquecimento, foram jogados pra debaixo do tapete onde tropas armadas ainda desfilam contra o próprio povo, até os dias de hoje. Nossa juventude não sabe lutar na rua, não sabe manifestar sua sensação de abandono, de existência vazia e estéril, porque foram doutrinados, desde cedo, a acreditarem que este é o melhor dos mundos, e que a não-agressão, a cordialidade e tudo que é politicamente correto é o melhor e mais digno e rápido dos caminhos.

Seremos nós zumbis? Andando em grupos, aos montes, sem destino, sem propósito? Pelo que lutamos? O que queremos de fato? Apenas fazer barulho? Se for assim, prefiro silenciar a fim de ouvir a voz de meus anseios, como fizeram bravamente os homens de Istambul.

Certa vez, Sêneca disse que “nenhum vento sopra a favor de quem não sabe aonde ir”. Conhecer a própria história e entender como ela se desdobrou para chegarmos onde chegamos, é um bom começo para que não sejamos empurrados por ventos sombrios de volta à Terra Mágica na qual dormimos nus e, puros e inocentes, sonhamos que estamos vestidos como reis e que nada nos fará mal. Então, por que acordar?

EMERSON BRAGA
Enviado por EMERSON BRAGA em 20/06/2013
Reeditado em 20/06/2013
Código do texto: T4350506
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