Lembranças

(Nota: Todas as segundas-feiras, participo do Grupo Oficina Literária de Piracicaba (GOLP) em cujas reuniões nos dedicamos à discussão de assuntos relacionados à literatura e também à produção literária. Nessa segunda feira, 02 de abril, criamos textos sobre fotos antigas da cidade de Piracicaba/SP, da Rua Boa Morte (corruptela de Nossa Senhora da Boa Morte),supostamente do período entre 1910-1930 . Esse texto é resultado desse exercício)

A manhã nasceu com o sol refulgindo como fosse dia de festa. No quarto das crianças onde me encontrava, a luz difusa penetrava o ambiente como uma carícia indevida.

Abri os olhos, indolente, a pensar que melhor tiver sido que o dia não tivesse amanhecido ainda. Meus irmãos dormiam, ao contrário de mim que agora tentava dormir mais um bocadinho, sem conseguir.

A porta abriu-se com pouco ruído e eu sabia, sem ver, que era mamãe. Esforçava-se para tirar-me do sono no último momento, começando por acordar meu irmão mais velho, depois o do meio e, finalmente, chegando até mim, o caçula.

Sussurrava em nosso ouvido:

- Acordem, banhem-se e vão tomar café! Hoje é dia de Corpus Christi e temos procissão depois do almoço.

Meus irmãos já tinham condições de darem conta de si mesmos mas eu ainda precisava dos cuidados de minha mãe que, amorosamente, cumpria a tarefa.

O dia transcorria entre brincadeiras até o almoço e, à tarde, preparomo-nos para a missa e procissão.

Lembro-me perfeitamente da rua Boa Morte, ainda de terra batida, por onde passava a procissão, em direção à Igreja dos Frades, saída da antiga Catedral.

Minha mãe trajava-me com botina, calção até o joelho e paleto, ambos listrados.

- Você vai ficar comigo. Seu pai e seus irmãos vão à frente. Não solte de minha mão.

Não queria perdê-la e mesmo depois de oito décadas, ainda a vejo, vestes brancas, sapato de salto, cabelos presos atrás da cabeça, cabelos de um maravilhoso castanho alourado.

A rua era tomada de lado a lado pela multidão que caminhava nas calçadas, homens separados das mulheres, pessoas a olhar pela janela das casas.

No meio da rua poeirenta, iam o andor, o bispo, a banda de música e os grupos das Irmandades e Congregações. Como esquecer o som das ladainhas e cantorias.

Esquecer, tão fácil! Minhas mãos trêmulas, desejam garatujas quase invisíveis que ouso chamar de letras para registrar aquilo que temo ter apagado, quando menos esperar, da memória.

Ao mostrar as velhas fotos, vejo nos olhos e ouço na boca de meus netos e bisnetos o espanto:

- A Rua Boa Morte era assim? De terra? - inconformados ao confrontá-la com a rua movimentada, larga e pavimentada de hoje.

Sim! Houve um tempo que era assim. Hoje, o que resta é a saudade de minha mãe, de meu pai e irmão mais velho que já se foram. Com o passar do tempo, o que resta são fotos, lembranças e uma quase insuportável saudade.

André Vieira
Enviado por André Vieira em 04/04/2007
Código do texto: T437358