Anna com dois "n"

Anna, em um dia qualquer, derramou lágrimas, muitas lágrimas, invariavelmente por conta de uma dor de coração, pelo qual tem sofrido muito, um casamento desfeito que, em sendo problema de tantas outras mulheres, é ao mesmo tempo tão particular por ser seu, com cores únicas.

O sofrimento custou a abandoná-la mas por fim, como deve ser foi sepultado, não, abandonado em etapas bem definidas, quase em um método científico: primeiramente, começou a observar com extremo carinho o próprio nome, Anna. Passou a corrigir que escrevia de forma errada:

- Desculpe mas meu nome é Anna, com "n" duplo - dizia, elegantemente.

Passou a apreciá-lo quando sentou-se e o escreveu em letra cursiva e grande: Anna. Dois elementos femininos entremeados com duas letras que funcionam como uma ponte de relativa harmonia estética. Desta opção pela estrita observação da grafia do seu nome, viu no primeiro "a" como o que fora e a ponto ao próximo "a" indicava a transição para o que deveria ser no futuro, futuro que queria agora.

Para tanto, haveria de sanear (em uma visão higienista mesmo) o que tinha e o que era, para poder construir o que seria. Desligou o celular, desconectou o telefone, recomendou à portaria para nem ao menos ser consultada no caso de uma visita inesperada.

Desafiou as lembranças, retirando fotos, livros, roupas que silenciosamente lhe contava histórias de cinco anos de uma relação de valor duvidoso, de momentos desiguais.

Incoerentemente, avaliou que em estando junto de seu companheiro, julgou-o muito presente em todos os seus registros, jamais houvera espaço para apenas ela.

- Muitas vezes, a vida a dois torna-se pior do que a vida solitária... - constatou, em virtude de todo acontecido.

Isso ocorreu enquanto recuperava maços de fotos, os quais sempre organizou cuidadosamente, separados e classificados em datas e locais.

Colocou o fragmentador de papéis ao seu lado e impiedosamente fez a seleção: para um lado as que queria manter, no fragmentador as demais, sendo que ao final desse processo que durou uma hora, de um lado encontrou-se uma pequena pilha e saída do fragmentador, um enorme volume de tiras de papel fotográfico.

Deu a mesma atenção a roupas, livros, CDs e LPs mas desta vez tudo foi colocado em caixas e sacolas.

Religou o telefone e entrou em contato com uma amiga querida:

- Camila! Eu queria saber se você gostaria de ficar com algumas coisas que estou quase jogando fora mas acho que você vai se amarrar. Quer vir ver?

_ Sim, Anna, eu vou!

_ Venha, depois almoçamos naquele restaurante gostoso aqui por perto.

Aqueles momentos, sentadas no tapete, verificando o conteúdo das caixas, lhe proporcionou alegria quase infantil.

_ Chet Baker! Você ia jogar fora um CD do Chet Baker? Eu iria te matar!

Anna riu-se, chamou a amiga de tola. Depois, já séria, foram almoçar no restaurante italiano que ambas gostavam.Ali, a invariável pergunta:

- Você não acha que está sendo muito radical?

Foi como um grande choque de realidade. Após um segundo de hesitação, um gole lento de vinho, pronunciou a frase que achava mais adequada:

- Radical? Não, nem um pouco. Lembre-se que purgar o que não presta, a mínima possibilidade disso é uma benção e ainda não acabou, querida!

De fato, não terminara: no dia útil seguinte, foi ao cabelereiro e cortou os cabelos castanhos escuros que se encontravam no meio das costas, em um penteado à Louise Brooks, tingindo os fios de preto intenso que contrastava com os olhos verdes.

Agora sim, chegou ao fim. Fim? Não! (Re)começo. Firmara-se definitivamente nela o absoluto orgulho de ser quem era.

- Desculpe, Anna, com duplo "n".

(Inspirado em uma Anna, jovem soprano russa, que vi na TV. Uma figura forte, de alguém que decididamente poderia retomar sua vida quando quisesse. 27/01/07)

André Vieira
Enviado por André Vieira em 04/04/2007
Código do texto: T437437