Minha casa é a rua, meu abrigo é o mundo

Eu deito acordada na gravidade zero. Meu dia, de tão sublime, é uma surpresa. Eu já nem sei qual a minha missão nesse mundo, se é que tenho uma. Por onde posso começar minha luta neste dia tão escuro? Será que devo trafegar por estes becos a procura de alguém que saiba alimentar minhas emoções? Poderia eu, uma coitada, roçar na porta daquela casa no fim do quarteirão pedindo para que uma alma gire a maçaneta e me tire dessa tão castigável chuva? Ou deixo meu corpo me levar até o peitoril daquela lojinha de roupas mais chique da cidade?

Alguém pode me ouvir? Ou estou falando comigo mesma? Não sei porque minha vida se desenrola desta maneira. Acordar todas as manhãs em um lugar novo deveria ser uma quebra de rotina, deveria ser bom, mas não é. O branco sem sol dos céus bate em meu rosto e parte dele ainda fica adormecida por causa do chão. Minha mente e meu pequeno corpo não andam em sintonia. Ela quer partir para a luta quer mudar de vida, enquanto ele quer mais um cochilo naquele perigoso asfalto. Espreguiçar - se faz doer os músculos, os ossos, acompanhados da pontada leviana no coração indicando que o "batente" está prestes a chegar.

Estou cansada de a vida me levar para lá e para cá. Em dias ensolarados eu aparentemente me sinto bem, percorro as ruas exibindo graça, beleza, e um suava balanço. Quando chove é uma tortura. Esqueço - me de como se atravessa uma rua, só ouço os barulhos dos motores, não posso ver. Parece que os pingos machucam outros diferentes de mim. Com aqueles protetores de chuva, procuram qualquer lugarzinho vago, seja dentro de ônibus, carros, qualquer cobertura. E quando vejo a corrida daqueles pés cobertos de sapatos caros, então, alguns nem me vem, outros quase pisam em cima e aparecem até aqueles vândalos que me afugentam, atiram me coisas. Sei que não me querem por perto. Não entendo porque sou diferente.

Minha mente se encontra vazia a procurar de alguém. Quando vejo aqueles seres parecidos com o meu físico entrando pelas portas das casas, tenho uma enorme vontade de pedir "Por favor, tirem me daqui!" Uma pena não entenderem o que quero dizer. O meu mundo é diferente do deles. Lá é aconchegante, quentinho, tem comida farta, descanso em um cobertor qualquer, brinquedos dos mais diversos tipos e tamanhos. Um carinho feito por uma mão que percorre desde o topo da cabeça até abaixo do pescoço. Já o meu lado é frio. Pouco ganho carinho e o aquecimento é meu próprio corpo.

Fiquei surda pelo silêncio. Foi algo que fiz? Porque não me responde? Porque não me leva para casa e me dá uma identidade? Suas mascotes possuem um "colar", "sapatos" limpinhos, abrigo para esses dias de chuva e um ótimo perfume. Eu sou fedida. Meu cheiro é de uma vira lata. Minha missão é a rua. Sou uma cadela, isso mesmo, uma cadela. Um animal que não pediu para nascer, mas como tantos outros, sabe o que é viver jogada no mundo.

Percebo a desigualdade da vida mesmo observando através dos olhinhos de uma animalzinho de quatro patinhas. Uns se abrigam nas esquinas daqueles lugares que vendem comida, outros sopram fumacinhas com os lábios, e os mais comuns são aqueles que usam caixas de papelão como registro. Não falo de animais, falo de pessoas. Então posso dizer que algumas vivem a minha vida. Agora não me importa. Agora já é de noite. Passei o dia todo contando minha história a uma pessoa que provavelmente vá esquecer no dia seguinte. Contei a um ser humano que não sabe nada do meu mundo, ou talvez agora saiba.

Vou abortar a missão agora! Posso por favor descer? Até qualquer outro dia de chuva.

Crônica produzida na aula de Redação Jornalística II da Universidade de Passo Fundo (UPF).

Priscila Czysz
Enviado por Priscila Czysz em 12/07/2013
Código do texto: T4383852
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