OS MURALISTAS

OS MURALISTAS

José Eurípedes de Oliveira Ramos

Os filhos eram pequenos (Guilherme, Luciana e Liliana -6, 4 e 2 anos de idade) quando nos mudamos para uma pequena chácara, próxima ao Poli Esportivo. Embora tentássemos impor disciplina, Regina e eu só obtivemos sucesso quanto à segurança (parcialmente) e higiene. O exercício de governo dos pais não era fácil: éramos dois contra três -mais o enorme território, a espaçosa casa e uns oitenta e tantos esconderijos das crianças. O terreno era um sumidouro, buraco negro que escondia meninos e sugava talheres, enxadas, martelos, panelas etc. Jardim imenso; gramado batuta para futebol, dedos pisados e unhas descoladas; barracão com cozinha externa para curtição de receitas esquisitas; prédio próprio para escritório e biblioteca visitada para retirada e seguida desmaterialização de livros e revistas; oficina,depósito de ferramentas e de brinquedos, de onde, ocasionalmente alguém errava a martelada e ficava dodói; árvores frutíferas e ornamentais, ótimas para a garotada trepar, macaquear e cair como mamão maduro; flores até, colhidas e ofertadas em situações emergenciais para agradar mamãe ou amansar papai; um monte de cachorros, para companhia, brincadeiras, e assumir (nem tanto) a responsabilidade de tratá-los e deles cuidar; patos, gansos, galinhas de Angola e outros bichos que apareciam por obra do Divino, convenientemente (des) organizados em canil, aviário e demais instalações precariamente improvisadas. Dentro da casa enorme, avarandada, amplas dependências, quatro salas, cozinha, copa, área de serviço, rouparia, quatro apartamentos, 6 banheiros, etcétera e tal. Piano, teclados, violões, flautas, cavaco, saxofone e alguns instrumentos medievais formavam o arsenal da folia. E uma feliz, saudável e total liberdade para brincar.

Até aí, a aparência é de normalidade, semelhante a nossa a outras jovens famílias. Todavia, alguns fatos levam a pensar que tínhamos um traço de maluquice. Um dia, por exemplo, surgiu do nada um desenho numa das paredes da sala de jantar. Bronca leve, desmaiada –o desenho era bonitinho. Apagamos. Dias depois, outro desenho engraçadinho e outra bronca frágil, acompanhada da exigência de que o autor ou autora apagasse, sob pena de castigo para os três. Ninguém dedou, ninguém apagou e ninguém castigou. O desenhinho ficou e os pais patetas fingiram esquecimento e miopia, combinados em não sufocar a criatividade do futuro (ou futura) artista (a cada dia o desenhozinho parecia mais engraçadinho). Mais desenhos e até pinturas surrealistas, neo-acadêmicas, figurativas ou artisticamente inclassificáveis foram surgindo, agora claramente de autoria de mãos diferentes, em silêncio lealmente compartilhado pelos três anjinhos. Caos instalado, a omissão paterno/maternal passou a comprometer a autoridade dos supostos governantes. Aí, foi convocada uma Assembléia Geral. Solenemente instalada, passaram as partes a parlamentar e a democraticamente decidir.Por escrito, a oposição propôs: 1. deixar a parede como estava; 2. liberdade total aos promissores artistas; 3. plena, completa, absoluta e irrevogável imunidade a castigos; 4. o fornecimento pelos governantes de todo o material necessário ao exercício da arte; 5. ampliação da área de trabalho dos artistas e autorização a que convidassem coleguinhas a participar do exercício vocacional que desenvolviam –juro!.. foi isso que escreveram. Colhidos os votos em urna secreta, a oposição venceu por três a dois. A partir daí, toda a sala transformou-se em mural consagrado pela vontade popular –aqui pra nós, um extenso e adorável mural: as paredes recobertas por flores, carinhas, casinhas tortas (algumas sem portas), galinhas de quatro patas...

O que às vezes destoava era a reação de alguns visitantes despreparados para a largueza da arte. Surpresos,olhares disfarçados, comentários intrigados, irônicos...

E nós nem aí!

José Eurípedes de Oliveira Ramos
Enviado por José Eurípedes de Oliveira Ramos em 06/04/2007
Código do texto: T439855
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