A CAMA DE FERRO


Às terças-feiras e aos sábados, em Lisboa, costuma realizar-se a chamada feira da Ladra, no Campo de Santa Clara, num grande espaço entre as freguesias de Alfama e da Graça. Ali se vende de tudo, na maioria dos casos velharias, mas também coisas novas e dizem as más línguas, roubadas nessa mesma madrugada... Fica nas traseiras da majestosa igreja de S. Vicente de Fora. Vivi ali perto durante vinte e quatro anos, no bairro do Castelo, num prédio que fica paredes meias com o Castelo de S. Jorge, o qual domina uma das sete colinas da cidade. Sempre foi uma zona muito popular, onde toda a gente se conhecia. Na altura era habitada apenas por gente humilde, agora é uma zona nobre, "in" como se diz, com condomínios privados anexos a alguns prédios a cair de podre por falta de manutenção, a maioria pertencente à autarquia e com andares alugados a idosos que vivem da sua parca reforma.
Um destes dias resolvi-me a ir à dita feira, fui cedo, mesmo assim já muito frequentada. Passeando pelo estreitos corredores entre as barracas de venda, deparei com umas travessas metálicas cremes que faziam conjunto com outras, mais pequenas e enferrujadas, para além da cabeceira e do peseiro, ambos trabalhados com magníficos arabescos mas meios descascados da tinta. Era uma cama em ferro, já acusando o peso dos anos, o uso e a ação da humidade. O preço não era acessível e seria necessário muito trabalho e alguma despesa para a colocar em condições - desempenar as pernas, lixá-la e pintá-la. Além disso, precisava de adquirir um colchão de arame, para fazer conjunto e de apoio ao clássico colchão de corpo e meio - tratava-se de uma cama de solteiro.
Olhando-a melhor, imaginei quantas pessoas se teriam deitado nela, os gritos de dor de doentes, os roncos de quem ressona, os pesadelos de pessoas com boa ou má consciência, os gemidos de prazer de amantes... Aquela peça antiga de mobiliário certamente que teria uma história para contar.
Com mais curiosidade que interesse na dita peça, ainda tentei regatear o preço com o vendedor mas cheguei à conclusão que nem teria onde a por e o preço nunca baixaria o que eu pretendia. Assim, desisti da aquisição, deitei-lhe um último olhar e depois continuei vagueando pelas barracas de venda.
Mais adiante adquiri um moinho manual de café, de parede, em loiça e metal, uma autêntica relíquia e que estava em ótimo estado de conservação. O preço também foi acessível e lá abalei para casa, satisfeito com a compra.


                                                                          22/07/2013