A mordida de tubarão

Ele veio sorrateiramente, por trás, talvez um pouco de lado e à direita. Era de tardezinha ou no começo da tarde, não sei ao certo. Só lembro que todos gritavam: _Lá vem ele, lá vem ele. E eu debilmente não percebi no momento certo do perigo iminente. Apesar de que eu estava ali invadindo seu espaço, seu território. Aliás, todos os animais, geralmente, só nos atacam quando invadimos o seu território. É assim com a formiga que nos ataca na bunda, como o marimbondo que nos ferroa ou um simples carneiro que nos dá uma cabeçada. A culpa é quase sempre nossa. Quando demonstramos uma certa ameaça ou ainda quando precisa de nossa matéria para se alimentar, o bicho pega. É assim desde que o mundo é mundo. O mais forte , quando precisa, utiliza os átomos e moléculas dos mais fracos para fazer uso de sua energia química e reestruturar suas células que morreram. É uma lei básica do meio ambiente. O lugar é deles, nós apenas os invasores.

Talvez os responsáveis pelo local poderiam, sim, ter proibido que nós fôssemos ali. Que tivéssemos acesso, sei lá. Mas não era o meu dia. Estava ali para dar o exemplo. Para contar nas estatísticas da contabilidade sórdida dos agravos.

Veio com toda a monstruosidade de seus dentes à mostra percorrendo o espaço em minha busca. Por certo sentiu o meu cheiro de longe. Calculou a distância, pegou o impulso e com toda sua bravura necessária veio em ataque. Era eu a presa. Frágil, humanozinho indefeso, limitado, sem defesas naturais, exposto a um acontecimento natural.

Não havia placas avisando. Só apenas o boato. Não vá para lá, minha mãe sempre dizia.

Seus dentes pontiagudos e sedentos talvez tenham estalado na língua prevendo o gosto da carne fresca. Sua boca grande cheia de bactérias e vírus e a cólera de todas as feras sentiu o gosto do medo.

O tempo pára quando vai acontecer algo sério. O mundo parece ficar em câmera lenta. Todos olham e alguns vocalizam um som de piedade e compadecimento pelo outro que se ferra. Quando alguém leva uma queda e presenciamos, bate na gente, lógico, um impulso de ir lá, de querer ajudar, levantar a pessoa. Mas, nos primeiros segundos, na verdade, há aquele pensamento de dar graças a Deus de não ser com a gente. Um alívio enorme. Mas desta vez era comigo. Eu era o alvo de toda piedade. Repare que quando alguém sabe que você vai se lascar por alguma coisa dentro de poucos instantes, esta pessoa não olha mais para os seus olhos. Há um medo de que ela sinta a dor que você vai sentir.

O ser humano tem suas complexidades, seu conhecimento tecnológico, sua inteligência e sua astúcia. Mas, no momento diante da raiva ferina é apenas um elementozinho lá da base da cadeia alimentar da natureza.

Estava eu ali naquela base. Quando ele veio sorrateiramente e abocanhou a batata de minha perna, cravando sua arcada dentária. Ainda gritei, lembro. Mas não adiantou de nada ele mordeu e mordeu feio. Balançou a cabeça com toda raiva do mundo. Tentou arrancá-la com toda a força de seus músculos. Pois foi isso. Tubarão me mordeu mesmo.

No mesmo dia, eu já em casa, o seu dono veio pedir desculpas a minha família sobre o ocorrido. Ofereceu uma quantia para os gastos hospitalares e disse que isso nunca mais iria acontecer. Cachorrinho malvado aquele. Anos depois ele teve otite, ficou com a cabeça troncha e depois morreu. Tive que tomar vacina e ainda hoje tenho a cicatriz.