O Velho Sonho

Deixe-o, deixe-o negar o tempo. Não como quem justifica para viver, mas como quem esfrega o arco nas cordas do violino para despertar o toque mágico da vida. Ele tinha as marcas das épocas no rosto, mas se olhava no espelho com olhos amendoados e o sorriso espalhava a paz da candura envelhecida, os mistérios das antigas pirâmides, ou das árvores vetustas dos parques. Veneráveis ao transcorrer da história, incólumes ao caos ordenado da transformação.

Estava ali. Na pele, a marca, a dor cicatrizada. Era ele. No esmero dos querubins que afastam a penúria. Seus pensamentos divagam em regozijo, como a febre dos meninos ao brincar. Porém, mais contida. Não menos radiante. Silenciosa, mas cujo rumor é captado pelos ouvidos mais atentos e pelas sensibilidades mais apuradas, que percebem da sala, às vezes, de cabeça baixa, na mais delicada capacidade dos sentidos, em que estes se confundem, sem jamais deixar de distinguir com clareza.

Via com os ouvidos, era isso, de fato. Entendia na certeza sensorial que emana dos que percebem por inteiro. Ele contemplava - o espelho refletia -, olhava os dentes, os olhos, a textura da pele, os pelos que dela saia. Cuidava-se com uma vaidade orgulhosa, não vulgar. Com o afeto de gostar-se, de ter sobrevivido aos percalços, aos intentos do mal.

Possuía o doce contentar que corre na boca da criança que prova a moeda de chocolate e paralisa. Mas ele, sem paralisar, continua seus gestos vagarosos. No vidro, as gotas de água da mangueira que molhavam o jardim tocaram a janela, escorriam como a mais suave palavra da chuva. Na varanda um beija-flor sorvia a água do bebedouro multicor. Era verão. Os dias estavam plenos de calor, mas a casa tinha o frescor das naturezas agradáveis.

O perfume exalava o cheiro firme e leve dos sábios, o verdor do aroma banhava a ponta dos dedos e refrescava os dois lados do pescoço. Era dotado não da fragrância do poder imposto, mas da graça persuasiva que convence as fêmeas; faz dos cativos revoltosos amigos que desejam boa ventura e enchem-se da esperança de novos e bons tempos para todos.

Penteou o cabelo, foi ao cinema. Quem sabe ao final do filme esteja morto. E o espetáculo legítimo da vida tenha-o conduzido com um encantamento superiormente interessante.