O PADRASTO TINHA O MESMO SOBRENOME DO PAI VERDADEIRO

_ Vossa mercê é sabedor que é sempre uma honra pousar por aqui, e sabe de minha gratidão.

Gentilezas e galanteios sempre foram pontos fortes do Viriato. Franzino de corpo, feições de não impor autoridade a ninguém, sorriso largo, e de fácil amizade. Tinha servido o Exército brasileiro anos atrás, e daí , herdara o codinome “Praça”, visto não ter conseguido mudar de posto de soldado, na corporação. O anfitrião era o companheiro de farda – também na reserva – Oficial Teodoro. Este sim, a aposentadoria veio quando era Tenente – mas fazia questão de ser chamado de Oficial, soava melhor. De certo, que sim.

_ Deixe o palavriado “Praça”, largue a “coisas” aí que Mariana leva pro quarto.

Lugar bom mesmo de prosear era o alpendre que dava para o quintal. E lá estava Praça Viriato: acomodado, ar de quem já é da casa, bocejando preguiçosamente na rede trançada de corda de palmeira piaçaba. Dona Mariana escolhera armar a “garimpeira” estrategicamente, a pedido do amigo visitante , perto do calor do fogão de lenha – feitura ainda dos bons tempos de coluna robusta e ereta do Oficial Teodoro . Depois de uma espreguiçada, mas uma bocejada, indagou:

__ Oficial Teodoro, me fale do Virgílio, soube que o tido como defunto apareceu por aqui?

Aquilo soou como música aos ouvido do Oficial Teodoro . Do alto de seus 1,90 mt – alguns afirmavam que já fora mais alto , quando jovem – mais de cem kg, bochechas salientes e rosadas, barba rala , sobrancelhas brancas e cheias, fez questão de levantar-se da rede e acomodar-se na cadeira preguiçosa, enrolada de “macarrão” multicolor – presente do neto - Há muito andava deveras desejoso de contar as peripécias do sobrinho sumido, e agora aparecido na casa de parentes lá pros lados de Marabá.

__ Não só ele, mas a filha, deixada ainda bruguela, e três netas. E antes que vós mercê me pergunte que ano ele sumiu, lhe digo: pergunte pra Mariana.

Deveras, Dona Mariana não era de esquecer facilmente das coisas - exceto as mais recentes - Se fosse dez anos atrás, podia perguntar. Empolgada que ficou com o entusiasmo do marido,desta vez nem foi preciso :

__ 16 de fevereiro de 1970, lembro como hoje, a mais velha contava três anos de idade e Dalvina beirava os 20.

Levantou-se pra servir mais uma caneca de café pro Praça Viriato, e não pensem que era só cortesia não, era atitude pensada, pra mantê-lo acordado, e sem cochilo. Pré-sentia que aquela conversa ia longe. Podia apostar com quem quer que fosse!

Oficial Teodoro sentiu-se na obrigação de contar aquela história direito. Endireitou-se na cadeira, fincou os pés no chão batido, apertou os punhos, e como se discurso fosse, a um auditório ansioso, continuou:

__O homem foi tido como quase morto depois de um acidente de carro na transamazônica, lá onde Judas perdeu as botas – Praça Viriato ensaiou uma rizada, porém conteve-se a tempo depois de um olhar de reprovação. Oficial Teodoro não admitia gracejos em conversa dele – mesmo que fosse anedotas de qualira. Era ouvir e ficar quieto - Visto o documento achado com ele estar rasgado e ter-lhe sobrado apenas o sobrenome, no atendimento do Hospital foi preenchida a ficha com o nome de Gaspar, e ano de nascimento 1942 de naturalidade olindense. Imagine !

__ Por Deus ! - Isso é impossível homem! Ele nasceu em 51.

Em situações outras, Praça Viriato com certeza levaria uma sova de palavras duras de reprovação pela desfeita de colocar em dúvidas a informação contada. Mas a oportunidade era boa por demais , além disso, Oficial Teodoro entendia a descrença e perplexidade do visitante - ele e Virgílio passaram infância juntos, e tinham quase mesma idade. Limitou-se a dizer:

__ Praça Viriato, contenha-se e deixe eu terminar os fatos!

Sob a luz vinda do forno, a conversa se foi noite à dentro. Oficial Teodoro contou do retorno do Virgílio à casa das filhas depois de 27 anos, desde o acidente até sentir que era na hora de voltar e rever os aparentados.

__ Onde diabos foi parar o coração desse infeliz? Realmente tenho dúvidas que esse Virgílio seja o mesmo que conheci.

__ Não tenha dúvidas Praça, esteve comigo aqui, nesse mesmo quintal contando tim tim por tim tim. A filha quando soube que ele era possuidor de terras pras bandas do Pará, tratou logo de procurar o cartório pra legalizar-se como filha dele no Registro de Nascimento.

__ Éguass!! Mas ela já é filha, cuspida e encarnada .Até fui no tal cartório com ele no dia do registro.

__ Vê-se mesmo que vós mercê não é só entanguido de corpo, é também de mente. Não escutou quando eu falei que mudaram o nome do meliante para Gaspar? Difícil mesmo, foi convencer o Tabelião de que o Virgílio do Registro era o padrasto, que por bondade, a registrara como filha, e que o verdadeiro pai era o Gaspar, ali na sua companhia.

Praça Viriato endireitou-se na rede, deu mais um gole no café quentinho – diacho de história maluca! Desse jeito, adeus cochilo.

__ Onde já se viu padrasto com o mesmo sobrenome do Pai verdadeiro...?

__ A filha puxou a esperteza do Pai ! - atreveu-se a intrometer-se Dona Mariana.

__Certo é que conseguiu convencer o tabelião a fazer a tal averbação de nascimento. E o pai agora se chama Gaspar, e em vez de 60, conta 74 anos de idade e tá aposentado.

__ Encurtando a história, ele agora por lá ,é conhecido como Pernambuco. E olhe que o homem nasceu em Ôlho D’Agua do Tolentino, município de pedreiras aqui mesmo no Maranhão.

__ E tem notícias da Filha mais velha Luzinira?

Desta vez, Dona Mariana Adalgisa acudiu com um visível gracejo:

__ Agora não é mais Luzinira. Alegando ser o nome motivo de apelido na escola, fez questão de que fosse mudado para Célia Marina. E assim ficou.

Praça Viriato , valendo-se da penumbra da noite, desmanchou-se numa rizada tímida e interna- dessas de doer o estômago –“diacho de situação, uma prosa como essa, e nem uma gargalhadazinha ?"

Eri Araujo
Enviado por Eri Araujo em 31/07/2013
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