Ainda me lembro
(Claude Bloc)
 
Ainda me lembro das palavras e das risadas. Do cheiro da comida de Neném, Do suor salgado ardendo pelos olhos, depois dos eufóricos e barulhentos passeios a cavalo. Da gritaria na chegada à casa grande, aumentando nesse último trechinho do caminho, o ritmo do galope...
Lembro-me também da lama pelo banheiro, depois do banho de açude.. Do esbravejado brando de mamãe atirando do próprio pé, sua chinela bem certeira, no lombo dos mais gaiatos. E seu sorriso de esguelha quando acertava o seu alvo. Das cantorias desafinadas na casa de Maria Alzira e da pipoca estourando e enchendo nossos olhos de uma alegria pura e doce.
 
Lembro sim,desses dias especiais e dourados, De tantas coisas mais que nosso desejo aventureiro inventava. Momentos mais fortes que o tempo, capazes de atravessar a imensidão do espaço e, ainda assim, transcender seus limites.
 
Éramos (quase) crianças e tinham-nos dado asas pra voar, pra sonhar e, assim, deixar transbordar essa alegria perfeita e perene que nos acompanhava quando estávamos de férias. Pela casa, as mil gargalhadas, as impensáveis brincadeiras, o joguinho de baralho à noite, enquanto o gerador de energia resfolegava ali no armazém até 10h da noite .Merendas roubadas do guarda-comida, no meio da noite, na escuridão da casa. O medo de almas. O receio imenso que a gente tinha de aparecer algum daqueles cangaceiros que diziam os mais velhos, estarem enterrados debaixo do assoalho de tábuas corridas. Éramos todos  muito unidos e felizes. Cada um de nós vislumbrava um futuro particular e o imaginava como sendo um pequenino céu pessoal, bem macio, onde nele, cada um teria todos os direitos. Era bem assim.
 
Daí porque hoje nos lembramos dessas coisas buscando os segredos guardados nesse baú do tempo, Ali está o nosso melhor, hoje com os retoques do presente. A cada dia vivido a gente fica, então, construindo mais uma linha nessa plataforma onde se implantavam os alicerces dos desejos de felicidade.
 
Por isto, é que com muita freqüência me surpreendo buscando alento nessas lembranças. Não é por puro saudosismo, pois isso nunca me entristece. Mas para apurar a riqueza que havia nessa tão farta simplicidade. Nessas brincadeiras que enchiam nossa alma de bons sentimentos.
 
De olhos arregalados para o mundo e de corpo esticado pelos parapeitos e pelo alpendre,  víamos as horas passar, sem nos preocuparmos com o tempo que perdíamos. Juntos inventávamos folguedos. A bananeira virava cata-vento. As nuvens se desenhavam pelo céu conforme as inventávamos. O sorriso era sempre singelo e de tão singela essa inocência perdeu-se no tempo.
 
 Sei de mim: minha cabeça era um emaranhado de idéias. Mesmo assim, cada um acatava o que o outro sugeria. Até mesmo quando um fingia dormir para permitir mil travessuras.
 
 Apreciar essas pequenas coisas é deixar a alma permanecer criança, é apaixonar-se por esse olhar que vê a vida tão intensamente e guardar-lhe o sabor. É ganhar o dia porque se conseguiu algo que achava impossível realizar. É acreditar que o amanhã será melhor.É olhar para as flores e confundi-las com borboletas. É se deitar numa rede  e ficar horas procurando desenhos nas nuvens. É não perder nunca essa simplicidade nem a sinceridade nas atitudes. É refenestrar memórias e nunca deixar de ter sede de poeta e alma de criança.