A VELHA GARAPA

A velha garapa era uma árvore que ficava à margem da estrada que ligava Calambau a Piranga, na zona rural Baía.

Nascida em 1700, presenciou, muitos fatos que ocorreram naquele local nos mais de trezentos anos de sua existência. Ficava cerca de setenta metros da margem do rio Piranga, do qual tinha uma visão privilegiada, principalmente, na época das “cheias”, quando as águas chegavam bem próximas de seu tronco.

Quando nova, viu por muitas vezes os índios puris da tribo dos botocudos, passarem por ali caçando ou, em suas canoas, pescando no rio Piranga. Gostava também de ver os guarás de cores avermelhadas, voando nas margens do rio.

Por volta de 1780, a garapa percebeu um grande movimento na outra margem do rio. Era a chegada dos bandeirantes paulistas que estavam ali, à procura de ouro. Construíram os seus ranchos e fizeram um córrego, desviando as águas de uma pequena cachoeira que existia logo abaixo daquele local. A água do córrego serviria para a lavagem do cascalho para separar o ouro. Nessa época já existia um povoado em um local denominado Guará Piranga em homenagem aos pássaros vermelhos que habitavam as margens do rio. De lá, vieram os exploradores de ouro que aqui chegaram, pois eles já estavam explorando as minas próximas àquela localidade.

A velha garapa ouviu quando os bandeirantes disseram que encontraram um local promissor logo abaixo, no lado esquerdo do rio e para tanto iriam desviar o córrego que era chamado pelos índios de “jurumirim”. Nesse local havia uma linda cachoeira e, mais tarde, o povoado que ali se formou passou a chamar-se Cachoeira do Jurumirim. Ouviu, também, que mais abaixo do rio, a uma légua distante, havia um local muito bonito que os índios chamavam de Calambau , que significava “lugar onde o mato é ralo e o rio faz curva”.

Passado algum tempo, os exploradores foram embora e começou a surgir no local denominado Calambau , um povoado. A ligação com Piranga (que já era um local bem povoado e cujo nome já não possuía o Guará) era pelo rio ou por uma trilha que passava bem próximo à nossa árvore. Passavam por essa trilha somente pessoas a pé ou a cavalo. E a velha árvore assistia a tudo já com uma certa preocupação.

Por volta de 1800, vários moradores de Calambau transformaram a trilha em um caminho por onde passavam as tropas e os carros de bois. A estrada já estava cada vez mais próxima à garapa. Muitas vezes os carreiros e os tropeiros paravam à sua sombra para descansarem. Aí ela ouvia a conversa deles e ficava sabendo dos acontecimentos em Calambau e em Piranga. Tomava conhecimento, também, do que acontecia em Mariana e Ouro Preto, onde os tropeiros iam levar os mantimentos produzidos na região, principalmente, açúcar mascavo e cachaça, trazendo, na volta, sal, querosene ,condimentos, etc.

À medida que o tempo passava, mais a estrada se aproximava de seu tronco. O movimento dos bandeirantes exploradores do ouro já estava diminuindo, pois o número de botes e canoas que iam e vinham de Piranga era bem menor. Por volta de 1930, por iniciativa do Padre Chiquinho, pároco de Calambau , e a ajuda da Prefeitura de Piranga, a estrada foi alargada pois, naquele ano, aguardava-se a passagem , pela primeira vez, de um automóvel. A nossa árvore ficou ansiosa, pois pelo que ouvira dizer através das pessoas que por ali passavam , o tal de automóvel fazia muito barulho e corria mais que um cavalo. Quando o automóvel passou debaixo dela, levantou muita poeira e, de fato, fez muito barulho, espantando o bando de maritacas que estavam pousadas em seus galhos.

Bem próximo à velha garapa aconteceu um assassinato, e ela presenciou tudo. O motivo foi uma simples discussão que se iniciou em uma vendinha que existia próximo ao córrego do Monteiro. Dois homens da região invadiram a casa do Mirico e o assassinaram debaixo da cama onde ele procurou se esconder.

No início da década de 30, quando o prefeito de Piranga era o Sr. Vilela, foi inaugurada a linha telefônica de Piranga a Calambau . O fio da linha telefônica foi pregado justamente no tronco da garapa. Foi aí que ela passou a inteirar-se de tudo que acontecia na região, ouvindo todas as conversas. De Calambau , as chamadas partiam sempre da casa do Sr. João Rosa. De Piranga, da Prefeitura Municipal. A garapa ouviu os pedidos para o Dr. Solon ir a Calambau atender os doentes; os resultados das eleições municipais; a comunicação de falecimentos ; a marcação de jogos de futebol, etc. A velha garapa era sempre bem informada...

Em janeiro de 1940, ela viu chegar os novos moradores da fazenda Baía. Era o jovem casal José Quintão Carneiro (Zé Carneiro) e Maria da Conceição Vidigal Carneiro (Cici). Eles chegaram de charrete e trouxeram a mudança em um carro de boi. Esse casal movimentou a região, pois o Zé Carneiro diversificou a produção da fazenda, gerando empregos. A Dona Cici ficou muito amiga das mulheres da região e transmitiu a elas muitos dos seus conhecimentos culinários, cuidados com a saúde, educação dos filhos, etc. O casal formou uma grande família na fazenda Baía, tendo os filhos: Murilo, Ilma, Neide, Marília, Ivone, Maristela, Marisa, Sônia, Elaine e Ernani.

A garapa era o ponto de referência da região: - “Encontrei com o João Arcino prá lá da garapa ; “a cerca está quebrada prá cá da garapa”; “o Antônio e a Mariquinha estavam namorando debaixo da garapa” ; e assim por diante.

Em 1959, a estrada seria melhorada e tão logo circulou a notícia, a garapa se viu em apuros, pois a estrada, provavelmente, se aproximaria mais de seu tronco. Dessa vez, era um trator que estava alargando a estrada. Quando este se aproximou da árvore, o Zé Carneiro, estando ali presente, pediu ao tratorista que a preservasse mantendo uma certa distância dela.

O tempo foi passando e a estrada seria asfaltada. O Zé Carneiro já havia falecido e o terreno onde estava situada a garapa já pertencia a herdeiros que já não tinham para com a árvore o mesmo sentimento dos que conviveram com ela por muitos anos. Desta vez não houve perdão. A velha garapa foi derrubada para dar lugar à nova estrada e, hoje, poucas pessoas se lembram dela.

Alguns pássaros dela ainda têm saudade. De manhã eles sobrevoam o local, na esperança de que ela surja com seus galhos exuberantes, onde eles possam pousar e cantar as suas lindas melodias ecoando por toda a região, tendo como cenário, ao fundo, o rio Piranga.

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Murilo Vidigal Carneiro

Calambau /junho/2013

murilo de calambau
Enviado por murilo de calambau em 02/08/2013
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